Entrevista originalmente publicada na edição de novembro-dezembro da revista VIVER SAUDÁVEL. Esta é a primeira de duas partes a ser publicada online (aceda aqui à segunda parte).
Depois de duas décadas de exercício profissional em contexto hospitalar, Liliana Sousa encontra-se desafiada por um gabinete que a obriga a pensar e a repensar o trabalho que outrora desempenhou, no terreno. Deste lado — o do associativismo — quer resolver problemas e garantir que os nutricionistas têm mais esperança no futuro. A Grande Entrevista, realizada a 11 de outubro no gabinete onde decide os destinos dos colegas, apresenta a radiografia de um ano repleto de mudanças e desafios na “casa da Nutrição”.
VIVER SAUDÁVEL (VS) — Cerca de três quilómetros separam o Hospital Pedro Hispano da sede da Ordem dos Nutricionistas (ON). Mas, na prática, vive hoje num mundo muito diferente. Da “prática clínica para a vida pública”, escrevemos quando a noticiámos candidata. Sente-se em casa?
Liliana Sousa (LS) — Sim, esta foi sempre a minha casa, enquanto casa dos nutricionistas. Iniciei o meu percurso profissional na prática clínica e assim permaneci durante largos anos, crescendo e desenvolvendo competências. Este foi um passo para um patamar diferente, de uma realidade que exigia de mim outro tipo de competências e também de qualidades, mas nunca sentindo que deixaria a casa da Nutrição, porque continuo a trabalhar com as mesmas premissas.
VS — Estamos num edifício cujas paredes assistiram ao crescimento de uma profissão que se impôs pela relevância dos seus membros. Em que estado estava a ON quando aqui se fixou?
LS — A perceção que existia onde me encontrava era de que a profissão não estava no caminho ideal, ou pelo menos naquele que se exigia nesta fase. Não posso dizer que tenha sido confrontada com uma surpresa completamente diferente.
VS — Se foi eleita por pouco, também não venceu nos Conselhos Geral e Jurisdicional por uma curta margem. A profissão está hoje mais unida que no dia 14 de outubro de 2023?
LS — Não podemos apenas assumir essa divisão. Se aqueles que participaram foram os que estavam mais próximos de ambos os projetos, não é de estranhar que isso se reflita nos resultados. “Nós somos uma profissão dividida”, essa é também uma expressão usada por muitos colegas. Existirão vários motivos para que isso tenha acontecido durante o percurso da nossa Ordem, que tem a obrigação de unificar os profissionais e de fazê-los sentir identidade nesta casa. Desse ponto de vista, não se sentia no terreno que isso existisse.
Estou convencida de que estamos a chegar a mais colegas, demonstrando a nossa preocupação com as suas preocupações. Temos a expectativa de que os colegas possam sentir-se mais nutricionistas do que aquilo que sentiam há um ano.
VS — No relatório ‘Avaliação da satisfação dos serviços prestados pela ON’, os colegas fazem um balanço positivo. No entanto, “vários membros sentem que a Ordem não fornece o apoio necessário” e outros criticam a qualidade das comunicações públicas. Revê-se neste diagnóstico?
LS — De facto, esse era um problema com o qual fui confrontada durante os primeiros meses do mandato. Tínhamos dificuldade em atender às solicitações, nomeadamente no simples atendimento telefónico. Encontrámos uma Ordem desfasada de apoio administrativo. No espaço de um ano, passou de cinco administrativos para dois, que foram os colaboradores que aqui encontrei. Estamos neste momento a recrutar um administrativo.
[Relativamente às comunicações públicas], mudámos o rosto da Ordem. Uma das práticas nesta casa era que nas redes sociais os comentários estivessem vedados, pelo que foi uma das primeiras indicações que dei: abrir os comentários. Precisamos de perceber, do ponto de vista construtivo, quais são as críticas e elogios que nos possam ser apontados. Outra das medidas que implementamos foi a agenda pública da bastonária. Acredito que exista um fundamento para essas observações, mas honestamente não consigo enquadrá-las, porque sinto que mudámos o paradigma, tendo uma comunicação mais aberta.
VS — A transparência foi uma das suas bandeiras em campanha. No imediato, foi rápida a disponibilizar a sua agenda, como disse. Outras promessas, como a transmissão das reuniões do Conselho Geral, a disponibilização das suas Atas e a redefinição dos valores de quotas, estão para breve?
LS — As atas já estão disponibilizadas no site, num separador próprio. A transmissão das reuniões do Conselho Geral estava inscrita no nosso projeto de candidatura. No entanto, foi apresentada antecipadamente à Direção pela presidente do Conselho Geral, logo após o início do mandato. Nesse sentido, foram desencadeadas as diligências necessárias do ponto de vista legal, no sentido de se avaliar a sua concretização, respeitando as regras do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), que acabaram por inviabilizar a sua implementação.
Fomos obrigados a rever todos os nossos regulamentos e não seguimos a linha de maior parte das Ordens que foi aproveitar a revisão estatutária para aumentar as quotas. É também sabido que vimos de um prejuízo financeiro muito avultado. Nunca a Ordem tinha tido um resultado tão negativo — cerca de 100 mil euros, no ano passado [2023] — e, portanto, existe uma responsabilidade que nos é atribuída. Mantivemos o valor [das quotas] e, em termos práticos, estamos a reduzi-lo, porque não acompanhamos a inflação.
VS — A eleição, este ano, do novo Conselho de Supervisão, um elemento que levantou dúvidas em várias Ordens Profissionais, completa os órgãos da ON. O que espera desta nova equipa e quais têm sido as suas prioridades?
LS — Todos esperamos que estes Conselhos de Supervisão possam corresponder àquilo para que foram criados. É um órgão novo, com funções claras. Desse ponto de vista, não restam dúvidas: garantir que a Ordem protege os interesses da população. A ter algum sentido — aqui sem qualquer juízo de valor, porque há também opiniões muito divergentes relativamente à necessidade da existência deste órgão — deve centrar-se na defesa dos interesses da população, de quem recebe os nossos serviços.
O Conselho de Supervisão não vai aprovar os nossos planos, relatórios de atividades ou orçamentos. No que se refere às decisões que podem condicionar os cuidados a prestar ao cidadão, aí sim, tem de ter uma palavra. E tem uma palavra que vai além do Conselho Geral. No que diz respeito às especialidades e estágios, ao acesso à Ordem Profissional, tem uma palavra a dizer, mesmo que os processos tenham passado pelo Conselho Geral.
VS — Nos últimos meses, esta questão — dos estágios — tem marcado as preocupações dos recém licenciados, enquanto a ON tem aumentado a sua lista de entidades parceiras para receber estes jovens. Quando será possível resolver este problema?
LS — Se tivesse uma bola de cristal, conseguiria planear os nossos passos de forma diferente. Não sei. A resposta é mesmo essa. Estamos a trabalhar com o resultado de um Estatuto que foi revisto há um ano e que resultou de uma decisão de manutenção do estágio profissional como requisito obrigatório para o acesso à profissão. Dizer como ou quando vou resolver esta situação tem de ser precedido da pergunta “esta solução é ou não a solução?”, porque se fosse, não teríamos esta conversa. Apesar de tudo, foi uma vitória, conseguirmos tantos protocolos, mas o protocolo não determina a vinculação da entidade às vagas de estágio, nem poderíamos fazer tal coisa. A questão do período formativo é colocada em cima da mesa como uma alternativa, mas tem de passar pelo Conselho de Supervisão e não tínhamos um.
Reconhecemos este problema como um problema dramático que pode condicionar a própria sustentabilidade da nossa profissão. Resolvê-lo será eliminar esta obrigatoriedade do estágio profissional. O que é que isto implica? Uma revisão do Estatuto na Assembleia da República. Sabemos o quanto custa mudar uma Lei, temos de passar por todos os grupos parlamentares, pelo Governo e pela nossa Tutela [Ministério da Saúde]. Não está nas nossas mãos. De qualquer forma, não perco a esperança. Se tinha bandeiras antes de vir para cá, neste momento sinto que tenho uma bandeira maior do que todas as outras. Não vou desistir e só deitarei a toalha ao chão quando me disserem, “preto no branco”, que não há nada a fazer. O período formativo está a ser desenvolvido. Os estágios profissionais continuam a ser feitos. Estamos ativamente a trabalhar em duas frentes.
VS — Permita-nos insistir na dúvida. Se todos aqueles que não conseguirem estágio tiverem um período de formação, existe necessidade de alterar o Estatuto?
LS — Tenho este defeito profissional de colocar acima de tudo na análise uma coerência de gestão e de razão. Impunha-se, há um ano, refletir a pertinência do estágio profissional de acesso à ON. Vínhamos com dez anos de história deste estágio. Estágio este que foi criado mais ou menos na altura em que aconteceu a convergência de duas profissões, para harmonizar, do ponto de vista técnico, duas licenciaturas com bases diferentes. Uma das coisas que pedi quando cá cheguei foi: “digam-me o que aconteceu durante estes dez anos”. Ninguém tinha feito esta reflexão. Que estágios tivemos? Quantos foram remunerados? Quantos geraram um emprego? E, para espanto de muitos, percebemos que menos de 30% tinham sido alguma vez remunerados. E não estamos a falar em remunerações em linha com aquela que agora é exigida [um mínimo de 1.025 €], o que nos obrigava a fazer uma segunda questão: Mas afinal de contas, o estágio profissional é um facilitador ou um obstáculo? Porque na verdade…
VS — Existe um estágio curricular…
LS — E a nova Lei dava esse mote. Licenciaturas com estágio integrado nos seus currículos académicos podem dispensar o estágio profissional de acesso à profissão, que foi o que fizeram muitas das Ordens Profissionais. Nós tínhamos essa vantagem. Mesmo não sendo obrigatório, o estágio profissional poderia sempre manter-se. Se viermos a materializar a sua dispensa como requisito obrigatório, continuamos a fazer protocolos. Não havendo vagas suficientes para estágio, o colega tem a alternativa de vir estudar mais. Porque, no fundo, é isso que o período formativo nos diz, mas não deixam de ser mais seis meses em que os colegas vão ter de fazer um investimento financeiro, com a desvantagem de não serem remunerados para isso. A ideia será que, terminando as suas licenciaturas, já com estágios académicos feitos, possam inscrever-se na Ordem.
VS — “A ON não é do bastonário”, garantiu antes de ser eleita. Como se tem relacionado a Direção com os restantes órgãos e Conselhos de Especialidade?
LS — Não o disse a pensar na estrutura interna da Ordem, mas acima de tudo que esta é dos profissionais. A relação com os órgãos tem de ser institucional, respeitando as funções atribuídas a cada um. À Direção compete ter um processo de articulação com todos eles, embora não haja qualquer impedimento de proximidade entre órgãos.
Temos trabalhado com os Conselhos de Especialidade de forma muito próxima e direta na revisão do Regulamento de Especialidades. O primeiro Regulamento não era, do ponto de vista de exequibilidade, viável. Precisou de uma restruturação quase completa do ponto de vista do processo. O que poderia ter acontecido era proporem-nos um Regulamento para apreciação, mas optámos por fazer parte do processo de uma forma ativa.
Com o Conselho Geral, a Direção tem cumprido com todas as diretrizes exigidas. O Conselho de Supervisão acabou de chegar, mas apesar de tudo temos tido uma relação bastante próxima, e o Conselho Jurisdicional tem uma linha de atuação que deve implicar uma barreira com a Direção — exerce o poder disciplinar sobre os membros.
VS — O novo Regulamento de Especialidades deve ser aprovado até dia 1 de março de 2025, sob pena de a ON se ver impedida de atribuir novos títulos. Em que estado está este documento, que deve ainda passar pelo Conselho de Supervisão e pela Tutela e ser publicado em Diário da República?
NOTA: [à data de publicação deste artigo, o documento já foi aprovado pelo Conselho de Supervisão e publicado em Diário da República].
LS — Depende do que a Tutela nos disser. É público que as especialidades correm uma ameaça de deixarem de existir. Aquilo que a Lei diz é que se novos órgãos não forem criados no decorrer de um ano após a entrada em vigor do Estatuto, são extintos.
VS — Receia a não aprovação a tempo?
LS — Não sou de receios. Se penso nisso? Penso. Se já fiz as contas? Já. Cumprimos com tudo aquilo que nos era possível. Estes Regulamentos estiveram em consulta pública, tivemos resposta por parte do Conselho Geral para submissão e aprovação e, entretanto, ficámos a aguardar a constituição do Conselho de Supervisão e já lhes enviei o Regulamento para poderem avaliar. Depois, há uma fase em que ele foge das nossas mãos, que é quando o enviamos para o Ministério. E aqui temos sempre o problema da eventual aprovação tácita que decorre após 90 dias úteis. E das duas uma: ou a Tutela aprova rapidamente o Regulamento e ele é publicado em Diário da República, ou não vou dizer que não ficarei preocupada. Podemos ficar a dias da aprovação. Quero acreditar que não vamos morrer nas mãos da Tutela.
VS — O Conselho de Supervisão tem alguma data-limite?
LS — Eu não posso impor datas-limite ao Conselho de Supervisão. Sensibilizei o Conselho para a urgência desta situação, particularmente desta situação. Por mais do que uma vez já conversamos sobre isso. Enviei o Regulamento e voltei a reforçar a urgência. Bastará isso, se nos derem o ‘OK’, no próprio dia enviamos para a Tutela. Depois tentaremos também sensibilizar a Tutela para esta situação, que é de um vazio que ninguém conhece bem.
A segunda parte da Grande Entrevista a Liliana Sousa já se encontra disponível.
Grande Entrevista (parte 2): “Sempre fui nutricionista por vocação”