
Por Flora Correia, Professora Catedrática convidada do Curso de Ciências da Nutrição da Universidade Lusófona, em Lisboa, e Presidente da Sociedade Portuguesa de Ciências da Nutrição e Alimentação.
As recomendações e diretrizes são documentos elaborados com o intuito de orientar a prática profissional em contextos clínicos, técnicos ou científicos. Baseiam-se, idealmente, em evidência científica sólida, com o objetivo de promover qualidade, segurança e coerência na tomada de decisões. A sua elaboração passa por várias etapas, da identificação do problema à validação por especialistas, e devem ser sujeitas a revisão periódica, para acompanhar a evolução do conhecimento.
Apesar deste excelente ponto de partida, considero que, por mais rigoroso que seja o processo de elaboração, nenhuma recomendação substitui o juízo clínico individual e a experiência no terreno. Foi precisamente isso que me levou a refletir sobre a mais recente diretriz internacional para a doença renal crónica.
KDIGO 2024: Boas intenções e algumas inquietações
Ao ler o documento KDIGO 2024 – Clinical Practice Guideline for the Evaluation and Management of Chronic Kidney Disease, publicado como suplemento da revista Kidney International, chamou-me a atenção o Capítulo 6, sobre as recomendações para investigação, onde se reconhece a escassez de estudos robustos sobre estratégias nutricionais para pessoas com DRC. Transcrevo algumas destas recomendações de investigação:
- Evaluate the effects of plant-based protein diets and diets such as the Mediterranean, Okinawan, and DASH diets versus animal-based protein diets on the risk of CKD progression, metabolic acidosis, hyperphosphatemia, and hyperkalemia.
- Evaluate the impact of low-potassium diets on serum potassium, mortality, and quality of life in people with CKD, by age, sex, and etiology.
Estas propostas, embora pertinentes do ponto de vista académico, levantam sérias dúvidas à luz da prática clínica diária. Nomeadamente, questiono até que ponto é seguro recomendar, ainda que em contextos de investigação, padrões alimentares ricos em potássio – como as dietas DASH e Mediterrânica – a pessoas com função renal reduzida.
Reflexões sobre o divórcio entre as disciplinas clínicas e o suporte nutricional
As dietas DASH e Mediterrânica são frequentemente recomendadas devido aos seus reconhecidos benefícios para a saúde cardiovascular e metabólica. Contudo, apesar destas vantagens, ambas apresentam um elevado teor de potássio, o que pode representar um risco significativo para pessoas com doença renal crónica, especialmente nos estádios moderados a avançados.
A dieta DASH, embora eficaz na redução da pressão arterial, inclui quantidades elevadas de alimentos naturalmente ricos em potássio, como frutas e hortícolas. Para pessoas com doença renal crónica, em que a capacidade de excreção do potássio está comprometida, esta elevada ingestão pode precipitar episódios de hipercaliemia, que são potencialmente graves e até fatais. Esta dieta inclui alimentos com elevados teores de fósforo, como cereais integrais, frutos secos e lacticínios, o que também poderá ser problemático em contexto de doença renal.
De modo semelhante, a dieta Mediterrânica, embora reconhecida pelas suas propriedades anti-inflamatórias e pelo perfil favorável de ácidos gordos, também inclui muitos alimentos com elevados teores de potássio e fósforo. Para além disso, alimentos que tradicionalmente fazem parte desta dieta, como queijos, azeitonas e pão, apresentam um elevado teor de sódio, o que pode dificultar o controlo da hipertensão e do volume corporal em doentes renais.
Na verdade, o uso destas dietas na doença renal crónica exige um acompanhamento nutricional rigoroso e uma monitorização laboratorial frequente, o que nem sempre é possível na prática clínica diária. Por estas razões, a adoção destas dietas em pessoas com doença renal crónica deve ser feita com cautela e ajustada às necessidades individuais, tendo sempre em conta a função renal residual e o risco aumentado de hipercaliemia. A ausência de um acompanhamento adequado e de revisões laboratoriais regulares pode transformar recomendações aparentemente benéficas em riscos reais para o doente.
A questão impõe-se: por que razão se propõe o abandono de estratégias alimentares prudentes e eficazes, como a restrição de potássio, em favor de padrões alimentares que, embora saudáveis em populações gerais, podem ser perigosos em contextos específicos? Uma dieta rica em hortofrutícolas, como a dieta DASH, pode fornecer entre 3500 a 5000 mg de potássio por dia, valores acima da capacidade excretora de alguns doentes a partir do estádio 4. Nestes casos, o risco de hipercaliemia grave não é negligenciável. Além disso, na maioria dos contextos ambulatórios, estes doentes realizam análises com periodicidade reduzida. Isto compromete a deteção precoce de alterações laboratoriais e aumenta a probabilidade de consequências adversas silenciosas, como a hipercaliemia, que pode ser fatal.
Em jeito de conclusão: responsabilidade partilhada
As recomendações clínicas, sobretudo em nutrição, devem ser claras, seguras e realistas. Não é, obviamente, a sua existência que critico, mas sim a sua transposição acrítica para realidades clínicas que exigem personalização e precaução. Um profissional experiente saberá adaptar, mas quem está em formação poderá aplicar sem questionar. A responsabilidade de quem elabora recomendações deve incluir a avaliação rigorosa da sua aplicabilidade prática, sobretudo em patologias crónicas com risco de complicações graves.
Enquanto nutricionista clínica com muitos anos de experiência no acompanhamento de pessoas com doença renal crónica, reafirmo que a segurança deve sempre prevalecer sobre a generalização. As recomendações devem continuar a assentar na melhor evidência disponível, mas nunca devem ser ditadas por modas ou tendências, mesmo que estas sejam baseadas em dietas já consolidadas como a DASH ou a Mediterrânica. Mesmo em contextos de investigação, onde se testam abordagens, é difícil controlar todos os factores envolvidos, pelo que os riscos associados a essas dietas em casos de doença renal crónica se mantêm. Não devem, por isso, ser alteradas abordagens clínicas sem uma clara justificação fisiopatológica e sem adaptar as orientações à realidade concreta de cada doente.