Covid-19, uma oportunidade para refletir sobre os efeitos da exposição a alteradores endócrinos na doença metabólica? 3115

É indubitável que a COVID-19 constituí um dos desafios do século para a humanidade, a medicina e a ciência, modificando as rotinas e os comportamentos da população mundial. Impôs uma pressão sobre os sistemas de saúde e incrementou a evolução do conhecimento a um ritmo sem precedentes, num esforço conjunto entre a comunidade médica e científica para compreender a patofisiologia e mitigar a doença.

A seguir à idade avançada, a obesidade é um dos fatores de risco que mais contribui para a severidade da infeção por SARS-CoV-2. Evidência robusta proveniente de uma revisão sistemática com meta-análise, demostrou recentemente que a obesidade (IMC > 30 kg/m2) aumenta o risco de hospitalização em 113%, de internamento nos cuidados intensivos em 74% e a mortalidade por COVID-19 em 48%. Adicionalmente, num estudo retrospetivo com 150 doentes COVID-19, verificou-se que os indivíduos com maior quantidade de gordura visceral apresentavam maior severidade da doença com necessidade de internamento nos cuidados intensivos.

Evidência crescente sugere que a exposição aumentada e/ou prolongada dos indivíduos a alteradores endócrinos (produtos químicos ubíquos capazes de interferir com o sistema endócrino, afetando a homeostasia e provocando efeitos adversos, mesmo em pequenas concentrações) está relacionada com a disfunção metabólica associada à obesidade e com a desregulação do sistema imunológico. Face ao exposto levanta-se a hipótese da existência de uma relação entre a exposição a alteradores endócrinos, a obesidade e a COVID-19. Ora, se os alteradores endócrinos estão associados à disfunção metabólica observada nas doenças endócrino-metabólicas, e se esta disfunção sustenta, em parte, a severidade da doença COVID-19, será possível que a maior exposição aos contaminantes ambientais possa afetar a progressão da COVID-19?

Sabe-se já que os alteradores endócrinos quando acumulados no tecido adiposo ativam importantes recetores de membrana (o recetor PPARγ, por exemplo), aumentando o número (hiperplasia) e o tamanho (hipertrofia) dos adipócitos, resultando no aumento da adiposidade e do ganho de peso. Importa ainda sublinhar que o efeito está diretamente associado à distribuição da adiposidade, sendo o tecido adiposo visceral o alvo principal. Adipócitos hipertróficos e disfuncionais produzem quantidades elevadas de citocinas pró-inflamatórias (IL-6, IL-8, IL-10, MCP-1, IFN-γ, TNF-α). Por outro lado, a ação dos alteradores endócrinos pode agravar o estado inflamatório, e levar ainda ao aumento do stresse oxidativo e à diminuição da regulação das células T. Estas alterações contribuem para o estado de inflamação crónica de baixo grau e hipercitonemia associado à obesidade, com diminuição da resposta imunológica, modificação da resposta inata e adaptativa e, consequentemente, aumento da suscetibilidade a infeções, como verificado na COVID-19.

Mais ainda, diferentes células constituintes do tecido adiposo apresentam recetores e enzimas para o SARS-CoV-2. A equipa liderada por Lisa A. Cassis (2008) demonstrou no modelo animal que a enzima de conversão da angiotensina 2 (ECA2 – o recetor do SARS-CoV-2) está presente em adipócitos e que a sua expressão está aumentada na obesidade. Mais recentemente, Zhang e colaboradores (2018) corroboraram os resultados anteriores e observaram que a expressão do recetor ECA2 era superior no tecido adiposo visceral. Uma vez que este órgão endócrino apresenta um ambiente favorável à infeção, na comunidade científica discute-se hoje se o tecido adiposo, particularmente o tecido adiposo disfuncional, pode constituir um órgão alvo e reservatório do SARS-CoV-2. Enquanto reservatório do vírus, atuaria como fonte ativa do mesmo e a sua ação local (assim como os alteradores endócrinos) poderia contribuir para o estado de hiperinflamação, comprometendo uma resposta imunológica eficaz e justificando a maior gravidade da COVID-19 em indivíduos com obesidade.

Como estas vias inflamatórias também podem ser ativadas pela exposição aumentada e/ou prolongada aos alteradores endócrinos, estes podem afigurar-se como mais um fator indireto para o aumento do risco de gravidade da doença em indivíduos vulneráveis, particularmente nos indivíduos com obesidade (figura 1). No entanto, mais estudos experimentais são necessários para confirmar esta hipótese.

A exposição a contaminantes ambientais, a obesidade e, mais recentemente, a COVID-19 são, por si só, problemas de Saúde Pública emergentes, com impacto nos sistemas de saúde e socioeconómico. Assim urge priorizar o tratamento da obesidade, otimizar o estado nutricional e melhorar os hábitos alimentares, aproximando-os do Padrão Alimentar Mediterrânico, reduzir a adiposidade e melhorar a saúde metabólica, bem como reduzir a exposição aos alteradores endócrinos. Por conseguinte, são mudanças fundamentais para melhorar os indicadores de saúde e qualidade de vida dos indivíduos durante e após a COVID-19 e prioridades dos Cuidados Personalizados de Nutrição.

Figura 1 – Modelo conceptual da relação entre os efeitos da exposição a alteradores endócrinos na obesidade e a COVID-19. O tecido adiposo enquanto reservatório dos alteradores endócrinos e, possivelmente, do vírus, poderá atuar como fonte ativa dos mesmos e as suas ações locais poderão contribuir para o estado de hiperinflamação, comprometendo uma resposta imunológica eficaz e justificando a maior gravidade da COVID-19 em indivíduos com obesidade.

Inês Castela (4400N) – Investigadora Júnior Comprehensive Health Research Centre (CHRC)

Diogo Pestana – Professor Auxiliar Convidado da NOVA Medical School|Faculdade de Ciências Médicas, UNL e Investigador CINTESIS

Diana Teixeira (1230N) – Professora Auxiliar Convidada da NOVA Medical School|Faculdade de Ciências Médicas, UNL e Investigadora Comprehensive Health Research Centre (CHRC)

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