
Por Cristina Varela Flores, do Departamento de Alimentação e Nutrição, Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge
A fermentação de carnes é um método ancestral de preservação que reduz microrganismos patogénicos e confere sabor e aroma únicos, tornando a carne num produto mais saboroso e apelativo.
Em Portugal, o chouriço de carne é muito mais do que um simples alimento – é cultura, tradição e sabor. Está presente em petiscos, receitas familiares e celebrações, e muitas vezes chega à mesa cru, cortado em fatias finas e acompanhado de pão e vinho. Mas será que sabemos o suficiente sobre a segurança alimentar deste produto tão acarinhado?
A produção artesanal de chouriço tem ganho destaque, impulsionada pelo desejo dos consumidores por alimentos “mais naturais” e locais. Contudo, esta preferência pode esconder riscos para a saúde, em especial para crianças, idosos e pessoas com imunidade fragilizada.
O fabrico envolve duas fases, em que a primeira inclui a mistura a frio, da carne e gordura de porco com água, vinho, sal, alho, pimentão entre outros condimentos. Na produção industrial, podem ainda ser usados aditivos como nitritos e antioxidantes. A segunda fase corresponde à maturação e cura, onde a fermentação ocorre, durando 2 a 4 dias no processo artesanal ou 24 a 48 horas no processo industrial. A cura tradicional inclui a fumagem com recurso a madeiras como castanheiro ou azinho, que contribuem para o sabor, cor e possuem também alguma ação antimicrobiana.
Recentemente foi efetuado no Departamento de Alimentação e Nutrição, um estudo de conveniência de amostra única, no qual se analisaram 85 chouriços de carne destinados ao consumo em cru, de fabrico artesanal e industrial produzidos em Portugal continental e adquiridos em talhos, feiras e supermercados.
Monitorização da ingestão de aditivos alimentares em Portugal
Face ao Regulamento (CE) Nº 2073/2005 e subsequentes alterações, tendo sido analisada apenas uma unidade por lote de produto, 3,5% das amostras seriam consideradas não satisfatórias, uma devido à presença de Salmonella e duas devido à presença de L. monocytogenes em nível superior ao limite máximo estabelecido.
Apesar do aspeto tradicional e sabor característico, só o controlo das matérias-primas e das condições de fabrico podem diminuir o risco associado à presença de microrganismos patogénicos. Os resultados microbiológicos obtidos revelaram que em 16,5% (14/85) das amostras foi detetado Staphylococcus coagulase positiva e em 9,4% (8/85) foi isolada Escherichia coli, das quais duas estirpes apresentavam potencial patogénico.
Em uma amostra foi detetada Salmonella spp. e Listeria monocytogenes foi detetada em 17 amostras, representando 20% (17/85) do total de amostras testadas, sendo que, uma destas amostras se apresentava ao consumidor acondicionada em embalagem plástica de origem.
Embora não tenha sido possível verificar nenhum padrão de distribuição na origem geográfica em relação a estas 17 amostras, observou-se que maioritariamente eram provenientes de talhos e de feiras.
Ensaios de resistência aos antimicrobianos mostraram que mais de 30% dos isolados apresentavam multirresistência e a sequenciação total do genoma de L. monocytogenes evidenciou a existência de relações genéticas entre chouriços de diferentes proveniências, sugerindo a origem da contaminação, não só ao nível das matérias-primas, mas também do produto acabado.
Sendo a carne crua um produto naturalmente muito contaminado, a segurança dos chouriços de carne depende essencialmente do cumprimento das Boas Práticas de Higiene e de Fabrico, da qualidade da matéria-prima e de um controlo rigoroso das diferentes etapas do processo de produção. Um teor de sal de 2,5% aliado à acidez gerada pela fermentação e o processo de secagem ou fumagem, promovem a inibição de bactérias patogénicas. No entanto, na produção artesanal, o controlo dessas etapas é difícil. Em contexto legal, é permitido o fabrico até 2000 kg de produto acabado por ano, em prédios urbanos destinados à habitação, o que facilita o desenvolvimento de um elevado número de unidades de pequena produção artesanal, mas dificulta o controlo alimentar por parte das Autoridades Competentes.
A Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar considera que enchidos fermentados, como o chouriço, são geralmente seguros. Mas quando o processo não é bem controlado, o risco aumenta. No Sistema de Alerta Rápido para Alimentos para Consumo Humano e Animal da União Europeia (UE) são reportados frequentemente alertas relacionados com a presença de Listeria monocytogenes em produtos cárneos secos e enquanto a UE permite a presença desta bactéria nos alimentos prontos a consumir, em nível igual ou inferior a 100 unidades formadoras de colónias por grama nas 5 unidades que constituem uma amostra, outros países adotam uma posição mais rígida, com tolerância zero.
Não se trata de alarmismo, mas sim de responsabilidade. É importante respeitar a tradição, sim, mas também garantir que ela evolua com os conhecimentos que temos hoje sobre procedimentos de higiene, controlo de pontos críticos e boas práticas de fabrico. A nossa cultura alimentar é um património valioso que devemos preservar, mas respeitando sempre a segurança.
Tendo em conta o contributo dos resultados obtidos neste estudo, recomenda-se por precaução, que o chouriço cru seja mantido separado de outros alimentos prontos a consumir e que quando se destina ao consumo por populações vulneráveis como crianças, grávidas ou idosos seja sempre submetido a tratamento térmico (totalmente cozinhado) por forma a garantir a eliminação de microrganismos patogénicos eventualmente presentes.