Telemóvel na mão, cérebro no bolso 1268

Por Rodrigo Abreu, Nutricionista na Rodrigo Abreu & Associados e Fundador do Atelier de Nutrição®

 

A situação deixou-me desconfortável. Tinha sido uma consulta normal, onde, para além da avaliação nutricional e definição da estratégia de intervenção, procurei responder a todas as perguntas que me foram colocadas. Estávamos já ambos de pé, à saída do gabinete, quando a senhora, erguendo o telemóvel que trazia na mão, exclamou: “Muito obrigado, tem muito jeito para explicar: gravei tudo para não me esquecer de nada!”. O meu sorriso desmanchou-se imediatamente e a única coisa que consegui dizer foi um seco: “Não devia ter feito isso, podia ao menos ter pedido autorização…”. O que se passa com as pessoas? Tirar o telemóvel do bolso e gravar (o que quer que seja, desde uma consulta a um acidente de viação) tornou-se um ato automático e irrefletido. Parece que o telemóvel está sempre na mão e o cérebro esquecido no bolso!

Com toda a gente a transportar consigo um telemóvel capaz de registar som e imagens, o risco de as conversas tidas no âmbito de uma consulta serem gravadas, divulgadas ou até deturpadas, não pode ser ignorado. E nem o facto de a gravação de imagens ou sons, em contexto de prestação de cuidados, não ser permitida sem a autorização de quem os presta e de quem usufrui desses cuidados, parece ser suficiente para impedir que isso aconteça…

A maldição dos Kennedy

Isto significa que as noções de privacidade, reserva e recato, mesmo dentro de um gabinete médico, ficam seriamente abaladas. Como se pode impedir alguém de gravar ou transmitir aquilo que se passa em consulta? E que implicações tem esta realidade na forma como um nutricionista conduz a consulta? Sendo quase impossível impedir alguém de entrar na consulta com o seu telemóvel, ou controlar a possibilidade de gravar/transmitir, diria que há 3 procedimentos simples que os nutricionistas podem adotar para salvaguardar a sua idoneidade:

  • Informar sobre a proibição de gravação de som e imagem sem consentimento. Esta informação pode estar disponível num poster à entrada da consulta, num aviso aquando da marcação da consulta, ou noutros formatos adequados à situação concreta de cada um. Existe moldura legal para a infração desta disposição, algo que também pode ser mencionado. O nutricionista pode até concordar com a gravação da consulta (e, inclusive, incentivá-la), mas é fundamental garantir que existe consentimento para tal.
  • Assumir sempre que tudo o que é dito na consulta, pode estar a ser gravado. Ser rigoroso na forma como se transmite informação, oralmente e por escrito, é boa prática de qualquer nutricionista, independente de existir ou não gravação. Mas a possibilidade daquilo que dizemos em consulta poder ser interpretado de forma diferente noutros contextos, obriga-nos a um nível de rigor na linguagem ainda maior. Ao assumir como pressuposto que está a ser gravado, o nutricionista torna-se também mais exigente consigo próprio, melhorando a sua prática.
  • Mostrar disponibilidade para esclarecimentos fora do âmbito da consulta. Se o utente souber que pode recorrer a emails ou mensagens para tirar dúvidas ou esclarecer questões adicionais, poderá sentir-se menos tentado a gravar a consulta. Além disso, o facto de esses esclarecimentos poderem ser dados por escrito, salvaguarda o rigor daquilo que o nutricionista está a transmitir. Alguns nutricionistas têm reservas (justificadas!) quanto a partilhar o seu número de telefone, mas a verdade é que, para muitos utentes, o simples facto de saberem que podem contactar o seu nutricionista, faz com que se sintam mais tranquilos e nem cheguem a usar esse canal. Ainda assim, é sempre conveniente definir limites apropriados (tipo de informação partilhada por telefone, horários e dias para atender chamadas ou responder a mensagens, etc.).

Por fim, é também importante referir que não são apenas os utentes a dar mau uso ao telemóvel durante a consulta. Se um nutricionista propõe tirar selfies com os seus utentes (aquela atriz famosa que veio à consulta, ou o atleta que conquistou um título), ou fotografar a espetacular evolução de peso dos seus clientes, poderá estar a abrir precedente para utilizações menos adequadas do telemóvel no espaço da consulta.

Nutricionista artificial

Nunca é demais alertar os nutricionistas para uma adequada ponderação das situações em que faz sentido, e é adequado, usar o telemóvel em consulta. Numa época em que tudo é conteúdo, a tentação de pegar no telemóvel e gravar/partilhar pode ser grande. Mas para o nosso próprio bem, é fundamental treinar o contrário: manter o telemóvel no bolso e ter o cérebro sempre à mão!