Reflexão sobre o diagnóstico nutricional 3802

A avaliação do estado nutricional é crítica: identifica um desequilíbrio nutricional consequente a uma condição clínica ou patológica, mas também se um indivíduo está em risco de desenvolver uma condição clínica ou patológica como consequência de um desequilíbrio nutricional.

O desequilíbrio nutricional, independentemente da causa, pode levar a um estado de mal-nutrição, ou seja, insuficiência ou excesso de energia ou de nutrientes. Neste sentido, e de acordo com as guidelines da European Society for Parenteral and Enteral Nutrition  (ESPEN), revistas em 2017 e publicadas na revista Clinical Nutrition[1], o rastreio nutricional – primeiro passo do Nutrition Care Process (NCP), deve ser conduzido em todos os indivíduos identificados como estando em risco e deverá servir de base para o diagnóstico, assim como para todas as ações de cuidado, incluindo a intervenção nutricional. A sociedade defende ainda que devem ser utilizadas ferramentas de rastreio previamente validadas, como o Subjective Global Assessment (SGA), Patient Generated (PG) SGA e o Mini Nutritional Assessment (MNA), no sentido de facilitar o rastreio. Esta posição da ESPEN, que é consensual com a da Academy of Nutrition and Dietetics dos Estados Unidos da América e de outras sociedades internacionais como as do Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Reino Unido, sugere ainda que além das ferramentas simples e validadas de diagnóstico nutricional, é crítico que o estado nutricional seja estudado de acordo com uma completa avaliação clínica, que inclua história clínica e alimentar, dados antropométricos e bioquímicos. No caso da ESPEN, além dos autores das guidelines, foi ainda consultado um painel de 38 peritos externos para participação e validação das guidelines estabelecidas. No que respeita ao rastreio nutricional incluindo as ferramentas acima descritas, os painéis de avaliação chegaram a 97% de concordância, tendo-se assim estabelecido a guideline com base em consenso FORTE. No entanto, ainda que os nutricionistas tenham independência profissional para a maioria das ferramentas de rastreio, o mesmo não se aplica à prescrição de análises clínicas para avaliação de parâmetros bioquímicos e biomarcadores do estado nutricional. Esta limitação aplica-se essencialmente ao Serviço Nacional de Saúde, mas também a entidades de saúde privadas. Nas situações em que os nutricionistas atuam de forma independente, a prescrição de análises clínicas não está interdita, mas não existe comparticipação por parte de seguradoras, o que cria barreiras à sua implementação e potenciais desigualdades no acesso ao cuidado nutricional.

A evidência mais robusta sobre a eficácia de intervenções nutricionais para a promoção da saúde, seja no âmbito do tratamento e gestão de condições clínicas/patológicas, seja no âmbito da prevenção da doença, é clara no que se refere à importância dos parâmetros bioquímicos. Tomemos como exemplo os estudos longitudinais com intervenções baseadas nos estilos de vida (dieta e exercício) durante longos períodos de tempo para prevenção da incidência de diabetes em populações de risco. Estes estudos baseiam-se na premissa de que a adiposidade está na base da resistência à insulina e das alterações cardiometabólicas subjacentes. Neste sentido, as intervenções têm como objetivo a perda ponderal para reduzir a adiposidade e, consequentemente, prevenir ou atrasar o desenvolvimento de diabetes e co-morbilidades. A eficácia destas intervenções é tão robusta que, a partir das mesmas, os painéis de peritos internacionais escrevem recomendações nutricionais para a prevenção e gestão da doença[2]. No entanto, só é possível avaliar o impacto metabólico de tais recomendações e intervenções de estilos de vida acedendo aos parâmetros bioquímicos. Mais ainda, tais parâmetros permitem personalizar a intervenção e a gestão da doença, otimizando os resultados e prevenindo o aparecimento de co-morbilidades e complicações.

De acordo com o Institute of Medicine dos Estados Unidos, cujas recomendações são referência a nível mundial, a intervenção nutricional baseada no diagnóstico, terapia e aconselhamento por parte de um nutricionista ou dietista registado, com o objetivo de gerir a doença crónica não transmissível, é denominada de Medical Nutrition Therapy (MNT). Voltando ao caso particular da diabetes, a evidência mostra melhorias de 0,3 a 1% nos valores de hemoglobina glicada (HbA1c) quando a MNT é aplicada em pessoas com diabetes mellitus tipo 1[3] e melhorias de 0,5 a 2%de HbA1c em pessoas com diabetes mellitus tipo 2[4]. A MNT na diabetes não estabelece critérios de distribuição de macronutrientes mas sim uma intervenção ajustada a cada caso particular, baseada na educação do próprio doente e com recurso a todos os métodos de avaliação do estado nutricional acima descritos (incluindo parâmetros bioquímicos) e à tecnologia2. Por exemplo, o nutricionista/dietista deve saber interpretar e ler registos glicémicos (pontuais e contínuos, com recurso a aplicações digitais). Isto permite otimizar a qualidade e quantidade de grupos de alimentos e, consequentemente, a carga glicémica das refeições em função dos períodos em que o doente tem mais ou menos resistência à insulina. O resultado é um controlo glicémico diário, contínuo, que se possa traduzir numa melhoria significativa de HbA1c e outros parâmetros cardiometabólicos implicados na progressão da doença.

Por outro lado, carências vitamínicas ou minerais são difíceis de identificar com recurso exclusivo à observação e à avaliação física do doente. Os sintomas de carências vitamínicas podem ser confundidos com variadas situações fisiopatológicas, sendo essencial aceder a parâmetros metabólicos para tomar decisões sobre a necessidade de suplementação ou até de referenciação a outro profissional de saúde.

Das várias barreiras a um serviço de nutrição clínica de excelência, destaca-se assim a não comparticipação direta de métodos complementares de diagnóstico necessários para a avaliação e monitorização do estado nutricional. Ultrapassar esta barreira será um passo importante para os nutricionistas clínicos.

Marta Silvestre, Professora Auxiliar NOVA Medical School, Universidade NOVA de Lisboa
Nutricionista, 3696N, especialista em Nutrição Clínica

[1] Cederholm T, et al. ESPEN guidelines on definitions and terminology of clinical nutrition. Clin Nutr. 2017 Feb;36(1):49-64. doi: 10.1016/j.clnu.2016.09.004.

[2] ElSayed NA, et al. Improving Care and Promoting Health in Populations: Standards of Care in Diabetes-2023. Diabetes Care. 2023 Jan 1;46(Supple 1):S10-S18. doi: 10.2337/dc23-S001.

[3] Scavone G, et al. Effect of carbohydrate counting and medical nutritional therapy on glycaemic control in Type 1 diabetic subjects: a pilot study. Diabet Med. 2010;27(4):477-479

[4] Effect of intensive blood-glucose control with metformin on complications in overweight patients with type 2 diabetes (UKPDS 34). UK Prospective Diabetes Study (UKPDS) Group. Lancet. 1998;352(9131):854-865.

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