“Estamos a abrir mão da nossa liberdade de nos alimentar?” 604

Organizada pelo Município de Santa Maria da Feira, em parceria com a Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto (FCNAUP), no âmbito do projeto “Cidade Criativa da Gastronomia da UNESCO”, a conferência internacional Food 4 Thought trouxe para cima da mesa uma reflexão sobre temas fundamentais da nossa contemporaneidade, entre os quais a alimentação e sustentabilidade. Os nutricionistas deram um importante contributo.

Conexão com os alimentos

O segundo painel, intitulado “Proximidade, património e sustentabilidade”, teve a moderação de Patrícia Padrão, da FCNAUP. Entre os oradores estiveram Larissa Carvalho e Ivete Santos, também da FCNAUP, além da chef norueguesa Lena Flaten, gerente de um restaurante localizado numa pequena aldeia sueca que aposta naquilo a que chamou de «comida de relacionamento», investindo em relações estreitas com os produtores artesanais, agricultores, caçadores e pescadores, o que lhe permite acompanhar, desde a origem, todos os produtos que emprega nos seus pratos de autor. A sessão evidenciou o papel dos produtos locais e das tradições na construção de um modelo alimentar sustentável e acessível.

Antes de entrar no tema “Valorização dos alimentos tradicionais portugueses na elaboração de queijos vegetais: avaliação das caraterísticas físicas e nutricionais”, Larissa Carvalho refletiu sobre o futuro da alimentação, focando-se na crescente perda de conexão das pessoas com o processo de cozinhar, especialmente com a também crescente popularidade do “pronto a comer”. Citando o presidente de uma das principais cadeias de supermercados a operar em Portugal, que previu o fim das cozinhas nas casas até 2050, questionou: «Estamos a abrir mão da nossa liberdade de nos alimentar?». «Sem cozinhas, perdemos a conexão com a comida e os laços familiares», sustentou.

Para a palestrante, a ausência de cozinhas pode significar uma «perda irreparável», afetando a proximidade, o património e a sustentabilidade. A produção local seria substituída por alimentos produzidos onde for mais barato, o património alimentar, designadamente a diversidade de receitas e sabores tradicionais, poderia desaparecer, e as grandes empresas passariam a ditar o que comemos. A consequência disso seria uma alimentação globalizada e menos livre. Acresce o impacto ambiental: mais ultraprocessados; mais transporte; mais embalagens.

Os trabalhos prosseguiram com a apresentação do estudo “O pão em Portugal: hábitos e perceções em relação à nutrição, sustentabilidade e afetividade”, pela nutricionista brasileira Tainá Gaspar, contribuindo para um olhar mais aprofundado sobre os padrões de consumo do pão e a sua ligação à identidade cultural.

Fechar com chave de ouro

O evento encerrou com a apresentação pública do “Manifesto pela criatividade na tradição gastronómica”. Da autoria dos já mencionados Pedro Graça e Olga Cavaleiro, juntamente com Gil Ferreira, vereador do Pelouro da Cultura, Educação, Juventude e Turismo na Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, pretende «convocar a comunidade para a necessidade de valorizar a cultura alimentar como parte central da sua identidade e da sua relação com a natureza – e, deste ponto de vista, protetora da sua saúde e bem-estar». «A tradição gastronómica não é imutável, mas é permeável às mudanças que o tempo presente exige nos modos de vida. A tradição apenas se mantém porque, de algum modo, se renova, se adapta, se transforma, evoluindo para servir os propósitos e as necessidades das comunidades presentes», pode ler-se no documento.

O programa cultural do evento reservou a estreia de três projetos artísticos – a instalação de media art “Serramar”, o filme documental “O pão doce de Santa Maria da Feira”, centrado na história da genuína Fogaça da Feira, produto com Indicação Geográfica Protegida (IGP) e símbolo votivo da secular Festa das Fogaceiras, e a exposição “Favas Contadas” –, a par da exibição do documentário “Carne: a pegada insustentável”, da apresentação de um livro de receitas, das visitas a uma empresa de fabrico de queijo e a plantações de morangos e kiwis, e da prova de águas minerais naturais de mesa nas Termas de São Jorge. Também não faltaram momentos de degustação de produtos gastronómicos locais.

À margem desta iniciativa, e para reforçar a importância dos profissionais da área da nutrição e alimentação nas autarquias, ficámos a saber que a Câmara Municipal de Santa Maria da Feira tem nutricionistas nos seus quadros há vários anos. Neste momento, são três e estão integrados na Divisão de Educação.

Cidade Criativa da Gastronomia da UNESCO

Foi a 8 de novembro de 2021 que o Município de Santa Maria da Feira viu aprovada a sua candidatura à Rede de Cidades Criativas da UNESCO para a área da Gastronomia, assente em seis eixos estratégicos: educação alimentar e nutricional; investigação do património gastronómico; formação e capacitação de profissionais e amadores; fomento de parcerias entre diferentes áreas criativas; cooperação em eventos e intercâmbios internacionais; e comunicação e sensibilização.

Decorridos mais de três anos de atividades que envolveram diferentes comunidades, Santa Maria da Feira orgulha-se de continuar a ser «o único território português com a chancela Cidade Criativa da Gastronomia da UNESCO».

 

Este artigo completa o texto “De Santa Maria da Feira para o mundo”, publicado na edição n.º 95 da revista VIVER SAUDÁVEL