Do mediterrânico ao processado: a dieta portuguesa após a ditadura 1086

Uma das mais longas ditaduras europeias do séc. XX, marcada pela dieta mediterrânica, fez-se livre com maior diversidade alimentar, mas também com um grande conjunto de obstáculos a uma boa nutrição: os processados.

Depois de 1974, iniciou-se em Portugal uma transição alimentar mais acessível, num país onde a fome era uma realidade. No entanto, o grande acesso a alimentos processados, aliado à falta de literacia alimentar, contribuiu para que hoje tenhamos mais obesidade e excesso de peso, garante a nutricionista Ana Rito.

Em entrevista publicada na última edição da revista VIVER SAUDÁVEL, a investigadora do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge e coordenadora do Centro Colaborativo da OMS para a Nutrição e Obesidade Infantil explica que a reflexão em torno da obesidade assenta em dois conceitos fundamentais.

Em primeiro lugar, na história epidémica, uma vez que “a obesidade não surge de um dia para o outro”. Trata-se de um “fenómeno epidémico” que se “tem vindo a espalhar com uma tendência crescente nos últimos 60-70 anos e assenta no conceito de que o nosso organismo desde sempre se protegeu contra a fome, contra a carência alimentar”. Ou seja, “sobrevivemos porque estamos preparados para armazenar gordura”.

Em segundo lugar, a liberdade. Depois de 41 anos de ditadura, pudemos ter acesso a alimentos diferentes e “inicia-se a transição nutricional no nosso país, provocada por alterações sociais, económicas e culturais”. Neste sentido, “a dieta portuguesa, que era essencialmente do tipo mediterrânica (até aos anos 70), modernizou-se com acesso a alimentos processados, com uma Indústria rapidamente crescente de snacks e refrigerantes“.

“É necessário continuarmos a elevar a obesidade infantil na agenda da política”

A especialista lembra que se deu um aumento do consumo de carne vermelha e de alimentos ricos em gordura, açúcar e sal. “Os alimentos densamente energéticos multiplicam-se, a publicidade alimentar destes produtos entra-nos em casa pela televisão, com novidades tão apetecíveis, baratas e acessíveis, e famílias agora citadinas acomodam-se nos sofás e passam a usar o seu carro para realizar as mais simples tarefas”, considera.

Tornamo-nos sedentários, sem motivação para o exercício físico“, assegura a investigadora, ao acrescentar: “se a cultura da abundância, até por vaidade, no início nos fez mais pesados, e ao olhar de então mais ‘formosos’, quando passámos a ser mais informados, a mesma cultura da industrialização cada vez mais acessível começou a dirigir-se aos mais desfavorecidos e àqueles com menos literacia”.

“Uma intenção pressupõe uma ação”

Hoje, no séc. XXI, “somos reconhecidos internacionalmente” no combate à obesidade infantil, mas “a situação está longe de ser resolvida”, uma vez que “a prevalência de obesidade infantil aumentou”.

“Em Portugal, temos boas ideias, realizamos estudos, elaboramos vários planos, roteiros e mais programas, mas será que os executamos de forma eficiente?”, questiona, ao deixar claro que “é necessário continuarmos a elevar a obesidade infantil na agenda da política“.

Para a nutricionista, “como diria Aristóteles, uma intenção pressupõe uma ação”. Apesar de nenhum país ter ainda encontrado “uma fórmula mágica para reduzir a prevalência de obesidade infantil” e de Portugal viver “crises políticas umas atrás das outras”, o que parece evidente “é que o que resultou nas primeiras décadas foi descontinuado, nomeadamente a mobilização de toda a sociedade, incluindo parceiros, para cocriar soluções e implementá-las em concreto”.

Ana Rito é a personalidade da grande entrevista da edição de maio-junho da revista dos nutricionistas. Com um olhar atento às condicionantes sociais e políticas que afetam a sua área de formação, a nutricionista pinta-nos um retrato realista do passado, presente e futuro.