Emagrecimento: Terreno fértil para a construção de mitos 1731

As redes sociais são «um veículo veloz de transmissão de informação e de desinformação». Aos profissionais de saúde é exigido um esforço cada vez maior para combater este fenómeno, principalmente numa área que desperta tanto interesse.

A prevalência da obesidade é cada vez maior. Apesar de cada vez existir mais conhecimento sobre esta condição, não tem sido suficiente para travar o seu aumento. Aliás, como salienta Catarina Nunes, «sabemos que não basta ter conhecimento para se conseguir uma mudança de comportamento (neste caso orientado para a perda de peso). É por isso que a abordagem “é só comer menos e mexer mais” não funciona». Neste sentido, a nutricionista e investigadora no Laboratório de Exercício e Saúde da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, defende que «hoje em dia sabemos ser necessário criar um défice calórico para perder peso, no entanto, criar esse défice não é fácil, pois a regulação do peso é influenciada por vários fatores: um que pouco ou nada conseguimos controlar, como a componente genética, o metabolismo de repouso; e os que conseguimos controlar parcial ou totalmente, como a alimentação e a atividade física».

Porque surgem os mitos

O emagrecimento é uma área que «desperta muito o interesse da população, tornando-se suscetível à criação de mitos com repercussão mediática, os quais contribuem para a desinformação e restrições alimentares desnecessárias», declara Vanessa Moutinho Pereira, nutricionista e formadora na Nutrition Academy. Os mitos «são ideias que surgem por diversos motivos, nomeadamente devido à ausência de evidência científica, à necessidade de explicações simples com base em experiências pessoais, assim como por motivos maliciosos como o marketing e manipulação», comenta Nuno Casanova Martins, professor universitário na área da Fisiologia do Exercício e diretor adjunto do Instituto Superior de Estudos Interculturais e Transdisciplinares (ISEIT) de Almada, do Instituto Piaget, acrescentando que «com a presença das redes sociais, em que em poucos segundos conseguimos expor uma ideia a milhões de pessoas, encontramo-nos perante um veículo veloz de transmissão de informação e de desinformação».

Cortar as calorias

Para Vanessa Moutinho Pereira, «vivemos numa sociedade muito focada na contagem de calorias. Quem nunca ouviu os famosos conselhos: “Para emagrecer basta comer menos!”; “Mexa-se mais e coma menos!”». Neste sentido, «não é negar a lei da termodinâmica (o peso é o resultado do que se come, menos o que se gasta), porém, o consumo calórico é apenas uma das variáveis do emagrecimento». Por isso, «restringir a ação do nutricionista a cálculos matemáticos para a obtenção do défice calórico é um enorme reducionismo», dado ser «preciso avaliar o estado metabólico do doente e a origem das calorias, uma vez que há alimentos que fornecem “calorias vazias” (como os refrigerantes)», salienta a nutricionista.

Assim sendo, de acordo com Vanessa Moutinho Pereira, existem três fatores que impactam o sucesso de uma intervenção nutricional: «i) balanço energético; ii) ciclos de alimentação-jejum; e iii) ciclos de sono-vigília». Tendo em consideração estes pontos, «o nutricionista deve indicar ao paciente o quanto comer (balanço energético negativo), o que comer (refeições de elevada densidade nutricional e de baixo índice glicémico) e quando comer (horário das refeições) de forma a aumentar a flexibilidade e eficiência metabólica», conclui a formadora da Nutrition Academy.

Perder peso rápido é pior

É frequente ouvir-se que a perda de peso deve ser gradual de modo a evitar o seu reganho a longo prazo. Não obstante, como aponta Catarina Nunes, «a pessoa não reganha peso por ter passado por uma perda de peso rápida ou lenta. O que acontece é que, chegado ao objetivo estipulado, há uma tendência para abandonar os hábitos anteriormente criados, seja a prática de atividade física ou certos hábitos alimentares». Além disso, quando se perde peso, é normal que o dispêndio energético diminua, «pelo que após atingir o objetivo, é necessário que exista um cuidado contínuo na manutenção do peso (não se pode voltar aos hábitos antigos)».

Todavia, se a pessoa perdeu peso de forma mais rápida, «o seu défice calórico foi mais “agressivo” e provavelmente foram realizadas várias alterações nos seus hábitos alimentares e de atividade física. Como tal, manter essas alterações a longo prazo pode ser mais complicado, o que pode tornar um indivíduo mais propenso a reganhar o peso». Em contrapartida, uma perda de peso mais gradual, com um défice calórico mais moderado, «pode ser mais fácil de implementar e de manter a longo prazo», continua a investigadora, lembrando que, por outro lado, «perder peso mais rápido pode dar um “boost” na motivação, potenciando a adesão ao plano devido à rápida evolução que se perceciona».

Independentemente de tudo isto, no final, o que vai garantir a conservação do peso perdido é «a manutenção dos novos hábitos a longo prazo e não se se perdeu peso mais rápido ou devagar». Daí Catarina Nunes aconselhar a que a velocidade da perda de peso «seja discutida com o paciente, apresentando as vantagens e desvantagens de ambas as opções. Mais importante, é necessário que o paciente compreenda a importância de um acompanhamento a longo prazo após a perda de peso de modo a conseguir manter os seus resultados durante a sua vida e evitar o reganho de peso».

O sono não tem impacto no peso 

A alteração no padrão e na qualidade do sono é um problema da sociedade atual e afeta a gestão de peso. «Com o estilo de vida ocidental, cada vez mais frenético, trocamos horas de sono por outras tarefas “mais urgentes” e tentamos compensar ao fim-de-semana», refere Vanessa Moutinho Pereira. Não obstante, «a privação do sono e o jet-lag social, diferença no horário de sono nos dias de trabalho e nos dias livres, causam desregulação dos ritmos biológicos». Sendo que, «no tratamento do excesso de peso, muitas vezes, um dos primeiros problemas a resolver é o ritmo circadiano desalinhado, já que uma das consequências da “distorção” do nosso relógio interno é, precisamente, o aumento de peso». Esta situação, de acordo com a nutricionista, «causa alteração no metabolismo energético, no ciclo do sono e na microbiota intestinal». Assim sendo, um padrão de sono inadequado conduz «a piores outcomes metabólicos a nível da composição corporal, parâmetros bioquímicos e a um maior consumo calórico com petisco contínuo. Acresce ainda o impacto ao nível da microbiota intestinal, mediado pelo sobrecrescimento de espécies do filo de firmicutes, associadas à obesidade».

De forma a otimizar o metabolismo, o binómio fome/saciedade e a homeostase energética, «na elaboração do plano alimentar devemos ter em consideração não só a distribuição energética ao longo do dia, horário, frequência e regularidade das refeições, mas também o padrão e a qualidade do sono», recomenda Vanessa Moutinho Pereira.

Metabolismo lento

É provavelmente um dos mitos mais conhecidos na área da perda de peso: «a pessoa afirma que tem um metabolismo lento (referindo-se ao metabolismo de repouso) e, como tal, mesmo comendo pouco não consegue perder peso», salienta Catarina Nunes.

Uma das consequências deste mito, é que «ao colocar-se o metabolismo como causa central de não se conseguir perder peso, a pessoa pode tornar-se refém da ideia de que não tem capacidade de alcançar o objetivo que ambiciona e, por isso, sinta que não vale a pena tentar, visto que o sucesso não depende de si, mas da sua genética», complementa Nuno Casanova Martins.

Atentando à evidência científica, existem, efetivamente, «pessoas com metabolismos mais “lentos” e mais “rápidos”, visto que esta componente do dispêndio energético depende de fatores como composição corporal, género e idade, mas, na verdade, o seu impacto na perda de peso provavelmente não é assim tão relevante», revela Catarina Nunes.

Neste sentido, a nutricionista explica que «na maior parte dos casos, o problema está noutros componentes do dispêndio energético, nomeadamente a energia gasta em atividade física (seja exercício ou não). Isto significa que a maioria das pessoas é sedentária, passando muito tempo sentada à frente a uma secretária e, por isso, mesmo realizando uma hora por dia de exercício, se passar o resto do dia deitada/sentada, vai continuar a ser sedentária».

A variabilidade entre pessoas no relativo à taxa metabólica de repouso é determinada, como complementa Nuno Casanova Martins, «quase totalmente por diferenças na composição corporal, existindo um impacto genético muito reduzido (provavelmente inferior a 10%)». Deste modo, a variável que parece estar sujeita a uma maior variabilidade, «sendo esta em grande parte determinada pelos nossos comportamentos, é o dispêndio energético através da atividade física», reforça o docente universitário, acrescentando que, adicionalmente, «não só estudos científicos parecem não encontrar associações entre a taxa metabólica de repouso e o sucesso na perda de peso, como inúmeros já encontraram associações significativas entre os níveis de atividade física com a composição corporal e o sucesso na gestão de peso a longo prazo; reportando, por exemplo, que pessoas com obesidade são mais sedentárias e que pessoas bem-sucedidas na perda e manutenção do peso perdido são fisicamente mais ativas».

Assim sendo, apesar de a alimentação contribuir muito mais para a criação de um défice calórico do que a atividade física, «é importante que o nutricionista consiga (juntamente com o paciente) arranjar estratégias para aumentar o tempo em atividade física (não necessariamente em exercício) de modo a tornar as pessoas mais ativas», recomenda Catarina Nunes.

Comer a cada 3 horas acelera o metabolismo

«Não existe evidência científica a demonstrar que comer a cada três horas, ou aumentar o número de refeições por dia, tenha um impacto significativo no metabolismo (aumentando o dispêndio energético), facilitando um processo de perda de peso», desmistifica Nuno Casanova Martins, que alerta que a crença neste mito tem como consequência «aumentar o número de refeições que se faz por dia, o que pode involuntariamente elevar o consumo energético diário (caso não exista uma adequada gestão calórica por refeição), dificultando um processo de perda de peso».

Na verdade, como continua o professor na área da Fisiologia do Exercício, o número de refeições que se faz por dia «não parece ter um impacto significativo no metabolismo ou na gestão de peso». Deste modo, «o número ideal de refeições diárias irá depender do indivíduo, do seu contexto, assim como da forma que melhor permitir gerir o apetite e aderir ao plano alimentar». Neste sentido, «o nutricionista deverá educar a pessoa que acompanha, mencionando que não terá de fazer pequenas refeições a cada 2-3 horas (a não ser que assim o pretenda), e que o número de refeições que faz por dia dependerá sobretudo da sua preferência, disponibilidade e capacidade de aderir ao plano alimentar», aconselha Nuno Casanova Martins.

Cheat meal acelera o metabolismo  

A realização destes dias ou refeições “lixo” é uma estratégia muito popular durante a perda de peso. No entanto, «devemos ter bastante cuidado com estas refeições, principalmente se a pessoa estiver a realizar um défice calórico moderado, pois é bastante fácil com uma refeição apenas colmatar o défice criado durante a semana», alerta Catarina Nunes. Além disso, a implementação desta refeição, «por vezes, torna a relação com a alimentação pouco saudável, principalmente quando é um dia estipulado e há a obrigação de cumprir de forma impecável o plano durante a semana só para chegar aquele dia e ter a “recompensa”». Só o facto de se chamar “dia do lixo”, para a nutricionista, «também faz com que exista uma certa conotação negativa relativamente a certos alimentos. Como tal, mais importante do que a realização desta refeição, o nutricionista deve trabalhar na relação do paciente com a alimentação, eliminando todas as conotações negativas associadas a certas refeições/alimentos (poderá ser positivo trocar para “refeição livre”)». Esta refeição livre pode ser utilizada, como sugere Catarina Nunes, «para potenciar a adesão ao plano alimentar quando feita de forma a não anular o défice criado nos dias anteriores».

O papel do profissional de saúde

Perante estes, e outros, mitos, nota-se «um esforço da parte dos profissionais de saúde em tentar desmistificá-los», declara Catarina Nunes. Porém, de acordo com a nutricionista, «o grande problema é quando temos alguns profissionais de saúde a propagar esses mesmos mitos, que não são suportados por qualquer evidência científica». Daí a investigadora defender que «tem de existir um esforço por parte dos profissionais para se manterem atualizados e não propagarem desinformação de forma inconsciente». Dada a complexidade que é a regulação do peso, Catarina Nunes acredita que, no que toca ao nutricionista em particular, este «não se deve cingir à realização um plano alimentar, mas também dedicar-se à criação de estratégias individualizadas de modo que seja possível a alteração comportamental (a curto e a longo prazo)».

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 “A culpa do ganho de peso é do açúcar”

Para Nuno Casanova Martins, este é também um dos mitos mais frequentes, sendo que «o ganho de peso ocorre devido à presença de um balanço energético positivo, ou seja, quando o consumo energético supera o dispêndio energético. Adicionalmente, vários estudos já revelaram perdas de peso significativas com a presença de consumos elevados de açúcar, assim como com diferentes distribuições de cada macronutriente, demonstrando que o açúcar, por si só, não leva ao ganho de peso nem impede a perda de peso».

Dada a (má) fama do açúcar, pode-se pensar ser necessário eliminar por completo o consumo de alimentos ricos em açúcar. «Mas sendo um conjunto de alimentos que geralmente proporciona um elevado prazer, a sua eliminação da dieta poderá reduzir a capacidade de a pessoa aderir ao plano alimentar, diminuindo a sua probabilidade de sucesso», alerta Nuno Casanova Martins.

Assim sendo, a verdade é que «o consumo de açúcar, por si só, não impede a perda de peso nem promove automaticamente o ganho de peso, sendo o balanço energético o fator mais importante na gestão do peso».

Nestes casos, cabe ao nutricionista, na perspetiva do docente na área da Fisiologia do Exercício, «educar o paciente, indicando que o consumo de açúcar não terá de ser totalmente eliminado com a exceção de casos específicos em que possa fazer sentido. No entanto, considerando que muitos alimentos ricos em açúcar apresentam uma elevada densidade calórica, o seu consumo deverá ser monitorizado e ajustado de modo a facilitar a gestão energética da dieta».

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“O pão engorda”

«Em consulta, em modo de autoprescrição, os doentes referem que já não comem pão porque “engorda”, “contém glúten, o que é mau para a saúde” ou “para emagrecer não se podem comer hidratos de carbono”», expõe Vanessa Moutinho Pereira. Não obstante, «o pão (ou qualquer outro alimento) não causará um aumento de peso, a menos que o seu consumo nos coloque em excedente calórico».

Segundo a perspetiva cronoterapêutica, temos, efetivamente, «maior sensibilidade à insulina e tolerância aos hidratos de carbono na primeira metade do dia», logo, segundo a nutricionista, «devemos dar mais ênfase ao seu consumo nesse período». Neste sentido, o horário das refeições tem ganho cada vez mais destaque «na área da cronobiologia e crononutrição».  Quanto às pessoas que evitam o pão por conter glúten, «efetivamente, existem situação clínicas relacionadas com o consumo de glúten, como a doença celíaca (base genética), a sensibilidade ao glúten não-celíaca e a síndrome do intestino irritável. Porém, a maior parte dos indivíduos que excluí o consumo de pão não tem qualquer destas condições clínicas, apenas se trata de uma ideia pré-concebida. Há doentes que reportam queixas como distensão abdominal e flatulência, atribuindo automaticamente a culpa ao pão». Sintomatologia que poderá ser causada por outros alimentos, «tais como aqueles que contêm FODMAPS (hidratos de carbono fermentáveis de cadeia curta)».

Daí que para Vanessa Moutinho Pereira, o papel do nutricionista, nestas situações, passe «por identificar estas situações, desmitificar mitos, elaborar um plano alimentar consoante a condição clínica do doente e melhorar a sua qualidade de vida».

ARTIGO PUBLICADO NA REVISTA VIVER SAUDÁVEL #83 (MAIO-JUNHO 2023)

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