Riscos e oportunidades na interação recíproca entre xenobióticos e microbiota 1918

A microbiota, comunidade de microrganismos e dos seus genes, tem sido o foco de atenção da comunidade científica e médica nos últimos 15 anos. Um dos pontos mais interessantes é a sua ubiquidade e capacidade de interação, uma vez que ao longo da história da Terra, diferentes microbiotas colonizaram todos os locais do Planeta, encontrando-se na maior parte dos ambientes, nomeadamente em superfícies, solos, ambientes aquáticos, plantas e animais, como nós humanos. No contexto biológico, a interação complexa entre as comunidades de microrganismos e os hospedeiros tem-se desenvolvido ao longo de milhões de anos de coevolução. Esse é o caso da microbiota intestinal, abundante e complexa, e que molda vários aspetos da fisiologia do hospedeiro, desempenhando diversos papéis na saúde e na doença. Aliado ao facto de ser dinâmica, é suscetível e responsiva à ação de inúmeros fatores ambientais, sofrendo mudanças ao longo do tempo. Nesta perspetiva de dinâmica temporal, a dieta, mas também a ingestão de xenobióticos (centenas de moléculas estranhas ao nosso organismo), permitem moldar fortemente a microbiota intestinal em poucos dias e podem representar um fator de risco e/ou uma oportunidade para estratégias terapêuticas não invasivas.

Efetivamente, muitos xenobióticos provenientes da dieta afetam a estrutura, composição e função da microbiota intestinal, incluindo contaminantes químicos, biológicos e físicos introduzidos nos alimentos durante as diferentes etapas do ciclo alimentar. Esses xenobióticos podem ser compostos nutricionais, como ácidos gordos polinsaturados, fitoquímicos polifenóis e fitoesteróis, compostos farmacêuticos, ou contaminantes químicos alimentares, ambientais e industriais, incluindo alteradores endócrinos, metais pesados, pesticidas, micotoxinas, antibióticos e compostos decorrentes do processamento de alimentos.

A microbiota intestinal humana pode interagir com os xenobióticos ingeridos de múltiplas formas, nomeadamente através de mecanismos diretos e indiretos e de interações recíprocas que se podem manifestar em relações complexas xenobiótico-microbiota-hospedeiro. Os mecanismos diretos incluem ativação (subprodutos mais tóxicos) e destoxificação (subprodutos mais seguros), mas também a ligação direta de xenobióticos a microrganismos. Por outro lado, os mecanismos indiretos incluem não só a recirculação entero-hepática dos xenobióticos, mas também a disfunção da composição e/ou atividade da própria microbiota do hospedeiro, que pode, por exemplo, resultar em disbiose ou alteração da resposta a determinados xenobióticos. No entanto, ainda se compreende muito pouco sobre os mecanismos subjacentes às mudanças que afetam a toxicidade, atividade biológica e biodisponibilidade dos xenobióticos, principalmente se considerarmos que estamos expostos a misturas e não a compostos isolados.

Os riscos da relação entre xenobióticos com potencial tóxico ou disruptivo são por isso claros. As interações destes com a microbiota podem ter um impacto adverso local ou sistémico, nomeadamente doenças metabólicas, neurológicas, e uma série de condições complexas e estados de doença desencadeados, nomeadamente, pela alteração das respostas imunes e permeabilidade intestinal. Numa revisão recente, Aguilera et al. sugere o termo “endoboloma” para os genes e vias da microbiota intestinal envolvidas na metabolização de alteradores endócrinos. Sugere igualmente agrupar os xenobióticos alimentares que alteram a microbiota e que estão ligados a efeitos adversos, sob a designação de compostos químicos alteradores da microbiota. De entre o crescente conhecimento sobre a interação entre xenobióticos e microbiota, Benoit Chassaing et al. demonstrou que vários emulsificantes, muito presentes no dia alimentar de muitos de nós, sobretudo os que escolhem produtos ‘magros’, alteraram diretamente a microbiota intestinal, promovendo disfunção metabólica e inflamatória, assim como suscetibilidade para cancro do cólon. Adicionalmente, devemos ter também em consideração os efeitos decorrentes da exposição a xenobióticos durante o desenvolvimento, uma vez que poderão contribuir para a disbiose e possíveis alterações no eixo cérebro/intestino, com consequências na vida adulta.

Contudo, a melhor compreensão do metabolismo dos xenobióticos pela microbiota intestinal, juntamente com o conhecimento da genética/epigenética e metabolismo do hospedeiro, poderá abrir um leque de oportunidades únicas de atuação preventiva e/ou terapêutica. Esta passará por uma melhor avaliação do risco toxicológico, mas também pela aplicação na nutrição personalizada, através do uso de xenobióticos ou intervenções nutricionais com potencial benéfico, e na medicina personalizada, recorrendo a novas terapias baseadas na microbiota.

Não obstante este foco no humano e sua microbiota intestinal, as dinâmicas das diferentes microbiotas em todo o sistema alimentar podem ter efeitos benéficos e adversos na saúde humana, animal e ambiental. Na verdade, atualmente deverá ser considerado um prisma mais holístico na avaliação de risco para a saúde humana, implementando a abordagem One Health e dando um papel relevante à microbiota na avaliação de riscos químicos. Esse é o passo que a própria EFSA e a Comissão Europeia procura dar, como é claro com a inclusão desta temática, juntamente com a dos alteradores endócrinos, na discussão realizada durante a ONE – Health, Environment, Society – Conference 2022, realizada de 21 a 24 de junho de 2022, e dedicada aos aspetos específicos da segurança alimentar na perspetiva dos sistemas alimentares sustentáveis e ao desenvolvimento da ciência de avaliação de risco.

Diogo Pestana, Professor de Toxicologia Alimentar da NOVA Medical School

Co-fundador da YourBiome® Therapeutics, uma spin-off da UNL dedicada ao desenvolvimento de novas terapias baseadas em microbiota

Investigador CINTESIS NOVA

 

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