Alimentação para o intestino funcionar bem 2138

À semelhança do que acontece em muitos outros países, as doenças do foro intestinal têm elevada prevalência em Portugal. As nutricionistas, professoras e investigadoras Cláudia Marques e Inês Barreiros Mota, da NOVA Medical School (NMS), indicam a síndrome do intestino irritável (SII) como a mais prevalente e referem que esta afeta cerca de um milhão de portugueses. Contudo, o rol é extenso: doença de Crohn; colite ulcerosa; doença celíaca; diverticulose e diverticulite; e parasitoses intestinais.

Filipa Horta, da Biocodex Microbiota Foundation, acrescenta que «pelo papel importante que a nutrição pode ter numa outra condição, desta feita um sintoma, importa destacar a elevada prevalência de obstipação entre a nossa população». Já Diana Picas Carvalho, nutricionista especialista em Nutrição Clínica, menciona o impacto na qualidade de vida e, consequentemente, com dispendiosos custos nos cuidados de saúde e diminuição da produtividade laboral, que estas doenças acarretam.

Queixas mais comuns

A nutricionista Filipa Horta começa por recordar que «o intestino interage com vários outros órgãos, nomeadamente com o cérebro, através do eixo intestino-cérebro, com a pele, com o trato respiratório, entre outros. Assim, devemos ter sempre presente que as queixas gastrointestinais podem ser sinais de problemas que podem estar fora do intestino e também que o desequilíbrio da microbiota intestinal, a chamada disbiose, pode afetar muitos outros órgãos e sistemas».

Entre as principais queixas dos pacientes, Cláudia Marques e Inês Barreiros Mota anunciam «inchaço/distensão abdominal que se vai acentuando ao longo do dia, flatulência e aerofagia. Sintomatologia que pode resultar da produção excessiva de gás pelos microrganismos que temos nos nossos intestinos. Quando existe uma maior quantidade de microrganismos no intestino delgado (SIMO – do inglês small intestinal microbial overgrowth), o que pode acontecer por diversos motivos, como, por exemplo, alterações da motilidade intestinal ou o uso prolongado de inibidores da bomba de protões, estes sintomas estão muito presentes. Através de um teste respiratório é possível determinar dois dos gases que são produzidos pela microbiota: o hidrogénio e o metano. Este teste é usado em contexto clínico para o diagnóstico de SIMO, que também é mais frequente em doentes com SII».

Isabel Pedroso Silva adiciona à lista de sintomas alterações nos hábitos intestinais, com relatos de diarreia, obstipação ou episódios alternados de ambos; azia e refluxo gastroesofágico; náuseas e vómitos; sensibilidades alimentares; e distúrbios do peso. A nutricionista destaca que «a consciência sobre a importância da dieta na saúde gastrointestinal tem aumentado, levando mais pessoas a procurarem ajuda de nutricionistas para tratar ou gerenciar essas queixas». Diana Picas Carvalho relata casos de doentes que acabam por fazer restrições alimentares de alimentos com glúten e lactose sem essa necessidade.

É aqui que os nutricionistas desempenham um papel crucial, «tanto na avaliação da dieta, como no desenvolvimento de planos alimentares personalizados para abordar esses sintomas, muitas vezes trabalhando em conjunto com outros profissionais de saúde, como gastroenterologistas, psicólogos e terapeutas, para garantir o melhor cuidado possível», descreve Isabel Pedroso Silva.

O papel da alimentação

As intervenientes não têm dúvidas em afirmar que a alimentação desempenha um papel fundamental na manutenção de uma boa saúde intestinal, seja no fornecimento de nutrientes essenciais, como fibras, vitaminas, minerais e antioxidantes, na promoção do equilíbrio microbiano, na redução da inflamação, na prevenção de doenças gastrointestinais, como diverticulose e cancro colorretal, na gestão de sintomas e na hidratação.

Daniela Seabra evidencia os casos de sucesso na clínica e a elevada taxa de referenciação por parte quer dos pacientes, quer dos outros profissionais de saúde. «Quando um paciente desses chega à consulta, temos como objetivo tentar entender diferentes pontos da saúde gastrointestinal e que possam estar a contribuir para as queixas apresentadas. Interessa-nos como está a parte da digestão e absorção, se há ou não inflamação intestinal, como poderá estar a microbiota e se há possíveis disfunções a nível da motilidade e do funcionamento do sistema nervoso entérico. Em todas estas áreas há um papel para a nutrição», frisa a nutricionista.

Cláudia Marques e Inês Barreiros Mota consideram, ainda, que «quando comemos, estamos também a alimentar as nossas bactérias. O que consumimos e não absorvemos vai servir de substrato para as nossas bactérias intestinais. De acordo com o substrato, o crescimento de determinadas espécies é favorecido em detrimento de outras. Por exemplo, uma alimentação rica em gordura e à base de produtos de origem animal favorece o crescimento de microrganismos resistentes aos ácidos biliares – que aumentam em resposta à elevada ingestão de gordura – e a redução das bactérias mais sensíveis, como é o caso daquelas que são responsáveis pelo metabolismo de polissacarídeos de origem vegetal. Estas adaptações funcionais resultam numa maior produção de metabolitos derivados das proteínas – como a amónia –, em detrimento da produção de ácidos gordos de cadeia curta – como o butirato – derivados da fermentação dos polissacarídeos não digeríveis. Metabolitos como a amónia e os ácidos biliares parecem aumentar a resposta inflamatória e o potencial carcinogénico. A redução da produção de butirato e consequente perda da integridade da barreira intestinal, também colocam em causa a boa saúde intestinal».

Contudo, Isabel Pedroso Silva alerta: «Não é só a alimentação que vai resolver o problema. É imperativo juntar à nova rotina alimentar rotinas de sono cuidadas, movimento intencional do corpo e gestão do stresse e ansiedade». Já Filipa Horta salienta que mais do que uma “arma” para a boa saúde intestinal, «a alimentação é a “arma” para uma boa saúde em geral. A alimentação influencia também em grande parte a composição da microbiota intestinal. Sabemos que esta relaciona-se com 90% das doenças atuais. Para além disso, a alimentação, nomeadamente o conteúdo e o tipo de fibra da alimentação e o mesmo relativamente aos macronutrientes, influenciam os metabolitos produzidos por esta microbiota e estes são determinantes quer na prevenção, quer na indução da doença».

“Descascar mais, desembalar menos”

Tendo em conta o papel da alimentação na saúde intestinal, importa perceber quais é que são os alimentos que podem ser aliados nesta matéria. «Não há que enganar», assegura Isabel Pedroso Silva: «Se basear a alimentação no velho ditado “descascar mais, desembalar menos”, vou estar a contribuir para uma ótima saúde intestinal. Ou seja, alimentos frescos. Especialmente, ricos em fibra, em antioxidantes, bem como alimentos fermentados».

A nutricionista acrescenta que «os probióticos são cada vez mais populares e fáceis de encontrar, mas, por vezes, não valem a compra, uma vez que nem todos têm os mesmos tipos de bactérias ou as mesmas concentrações. Muitas vezes, não vêm com fontes de alimentos ricos em fibra para as bactérias, o que pode prejudicar a sua eficácia, se o indivíduo não estiver a ingerir quantidades suficientes destes alimentos. Pessoas com, por exemplo, diagnóstico de sobrecrescimento bacteriano não devem suplementar probióticos, correndo o risco de exacerbar os sintomas».

Assim, para Isabel Pedroso Silva é importante relembrar três aspetos, quando se está numa fase inicial de muito desconforto: «A microbiota intestinal não é estanque, logo vamos sempre a tempo de cuidar dela e mudar a sua resposta, pouco a pouco; a quantidade é um dos fatores mais importantes quando existem sintomas; e a saúde intestinal pressupõe variedade alimentar».

Também há vilões

Não se pode falar em aliados de uma boa saúde intestinal – nos quais se incluem os cereais integrais, os hortícolas, a fruta, as leguminosas e o peixe, que estão na base da alimentação mediterrânica, e aos quais se associam também os alimentos fermentados (iogurte, kefir, kombucha) – sem mencionar aqueles que podem ser considerados “inimigos” da saúde intestinal.

No fundo, transmite Isabel Pedroso Silva, os vilões podem ser enquadrados nos grupos dos alimentos altamente processados – «ricos em gorduras saturadas e/ou trans, açúcares refinados, aditivos, podem contribuir para a inflamação no trato gastrointestinal e prejudicar a saúde intestinal» –, alimentos gordurosos, picantes ou muito condimentados – «podem irritar o revestimento do estômago e o esôfago, levando a sintomas de refluxo gastroesofágico» –, bebidas alcoólicas – «o consumo excessivo de álcool pode prejudicar a integridade do revestimento intestinal e a microbiota» –, cafeína – «em algumas pessoas, o consumo excessivo de cafeína pode levar a sintomas de azia ou refluxo» –, bebidas gaseificadas – «podem causar inchaço e gases devido à ingestão de ar e ao teor de açúcar ou adoçantes artificiais» –, níveis de stresse alto/crónico – «há uma ligação bidirecional entre o cérebro e o intestino (através do nervo vago). É sempre uma boa prática aconselhar o utente a incluir momentos de relaxamento diariamente» –, e fumar – «aumenta o risco de doenças gastrointestinais, como úlceras, doença de Crohn e cancro do cólon».

Além disso, «uma dieta de estilo ocidental, rica em hidratos de carbono refinados, açúcares simples, ácidos gordos saturados e pobre em frutas e vegetais, pode ser um gatilho para a doença de Crohn e colite ulcerosa», adverte Diana Picas Carvalho.

Contudo, conforme salienta Isabel Pedroso Silva, «a sensibilidade individual aos alimentos e hábitos varia, e o que pode ser prejudicial para uma pessoa pode não ser necessariamente prejudicial para outra. É importante prestar atenção ao próprio corpo, identificar quais alimentos ou hábitos causam desconforto ou sintomas gastrointestinais e procurar orientação nutricional, não só para construir novos hábitos, como para evitar medos alimentares e perturbações do comportamento alimentar».

Perfil do intestino para medicina de precisão

Diana Picas Carvalho defende que, atualmente, a investigação do microbioma está a ir em direção a uma compreensão molecular mais profunda das suas contribuições para a patogénese de doenças complexas. «Alguns estudos recentes, baseados em sequenciação de ADN de próxima geração, sugerem que a utilização de dados de microbiomas específicos de cada pessoa pode contribuir para o desenvolvimento de medicina de precisão, diagnóstico personalizado, mais preciso e não invasivo, além de ser economicamente viável pela deteção precoce de diversas patologias», refere a nutricionista, para quem «a identificação da composição da microbiota e a introdução de novos métodos para a restituir seria bastante útil no tratamento de doenças como distúrbios gastrointestinais, obesidade, doenças cardiovasculares, alergias e doenças relacionadas ao sistema nervoso central, doenças psicológicas, que afetam uma grande população mundial. Ensaios experimentais e clínicos para o tratamento destas doenças com base na modulação da composição das bactérias intestinais têm mostrado serem promissores como estratégia terapêutica».

Também Daniela Seabra defende que é importante definir o perfil da microbiota mais benéfico, porque «sabemos que alguns perfis têm vindo a ser associados a diferentes consequências a nível de saúde em geral, não só no peso, mas também a nível da doença mental, da neurodegeneração, das doenças crónicas inflamatórias, incluindo as doenças autoimunes, entre muitas outras situações clínicas».

Opinião corroborada por Cláudia Marques e Inês Barreiros Mota, que acrescentam que «é por isso que se tem apostado na caracterização do perfil de microbiota de indivíduos saudáveis e de indivíduos com doença para, através de algoritmos, conseguirmos classificar uma pessoa como saudável ou não, de acordo com o seu perfil de microbiota». «Os resultados do nosso trabalho de investigação MEDBIOME mostram ainda que a análise ao perfil da microbiota intestinal pode vir a ser utilizada como um biomarcador da eficácia da intervenção nutricional e do controlo da diabetes tipo 2. As alterações na microbiota em indivíduos com diabetes tipo 2 são notáveis logo após quatro semanas, devido ao aumento da adesão à Dieta Mediterrânica, o que, ao fim de 12 semanas, se traduz num melhor controlo da doença. O conhecimento do perfil de microrganismos, antes e após a intervenção, poderá ser útil na avaliação da eficácia da intervenção nutricional escolhida, permitindo redefinir a estratégia, se necessário, de uma forma mais rápida e eficiente», frisam.

Daniela Seabra alerta para aquela que considera «uma fragilidade que a investigação tem de ser capaz de ultrapassar»: os riscos de falsos negativos. «Sabemos que apenas analisamos o que é excretado, e há diferentes microrganismos que se organizam em biofilmes que se fixam, e que podem não ser excretados, logo, não serem analisados. Aguardo com expectativa o que os diferentes estudos nos possam trazer», declara.

Efeitos da pandemia e da crise económica

O que comemos reflete a vida social, económica e cultural do país, pelo que não se podem descurar fatores como os efeitos da pandemia de covid-19 e, agora, da crise económica.

Conforme destaca Isabel Pedroso Silva, há que ter atenção a fatores como o facto de ocorrerem alterações nos hábitos alimentares, «o que pode afetar positivamente ou negativamente a qualidade da alimentação, dependendo das escolhas feitas». A nutricionista alerta para o aumento do consumo de alimentos processados em momentos de stresse e incerteza, nos quais as pessoas recorrem a alimentos de conforto, como fast-food, doces e alimentos processados. «A abordagem do nutricionista passa pela reeducação alimentar, de forma a evitar défice de nutrientes, ajudar na gestão das refeições lá em casa, e assegurar estratégias de comportamento alimentar adequadas – queremos saber gerir a fome por impulso e saber lidar com possíveis medos alimentares», considera.

Daniela Seabra verifica que o aumento do custo de uma dieta saudável ocorreu em combinação com uma diminuição do rendimento disponível na sequência dos efeitos persistentes da pandemia. «Durante o primeiro ano da pandemia, um em cada três indivíduos encontrava-se em risco de insegurança alimentar. As pessoas com menor escolaridade, desempregadas, com menos rendimentos e com sintomas de ansiedade e depressão são as que se encontram em maior risco de insegurança alimentar», advoga a diretora clínica e CEO da Clínica Daniela Seabra – Nutrição Funcional e Personalizada, que constata que a recuperação económica da pandemia observada em 2021 abrandou. «Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2020 e 2022, 12% da população portuguesa sofria de insegurança alimentar moderada ou severa, uma prevalência que coloca Portugal no sexto lugar entre os 13 da Europa do Sul, com a percentagem mais elevada neste indicador», assinala, referindo que «as opções alimentares mais baratas, tendem, por isso, a ser as escolhidas. Visto que estas opções alimentares têm normalmente um menor teor em fibras prebióticas, e com maior teor em açúcares e gorduras processadas, o impacto na microbiota no sentido negativo é expectável. Além disso, dado o impacto do stresse a nível da microbiota, e estando a insegurança alimentar associada ao aumento do stresse e da insegurança, diria que são dois fatores que podem estar a contribuir de forma negativa para a composição da microbiota».

Cláudia Marques e Inês Barreiros Mota estiveram envolvidas num estudo em que se concluiu que a infeção por SARS-CoV-2 é mais severa nas pessoas que têm um desequilíbrio da microbiota intestinal. «Quanto menor a diversidade de microrganismos no intestino, maior a severidade da infeção. Sabemos ainda que um estilo de vida sedentário e que os maus hábitos alimentares potenciam esta redução da diversidade. Assim, se por um lado, durante a pandemia quase metade da população portuguesa alterou os seus hábitos alimentares para pior, a pandemia pode ter potenciado também esta alteração da microbiota, tendo como consequência uma população mais suscetível à doença», expõem as investigadoras da NMS.

Artigo publicado originalmente na revista Viver Saudável #86 (novembro-dezembro).

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