
No seu 10.º aniversário, a VIVER SAUDÁVEL convidou 10 nutricionistas a avaliar uma década de Nutrição. O artigo de opinião que se segue é da autoria de Liliana Sousa, bastonária da Ordem dos Nutricionistas.
A nutrição em Portugal tem um caminho longo, feito da reunião de esforços de profissionais que, identificando nesta ciência um papel fundamental como pilar da saúde, depositaram nela estudo, dedicação e empenho, tendo dado, assim, origem ao início da sua história.
Pedem-me para refletir sobre os últimos dez anos, curiosamente, um período em que se passa de esperança a incerteza, rumos incertos, que levaram a que algumas vozes se tenham levantado com firmeza crescente, por temer que o caminho pudesse ver-se interrompido e desviado do propósito desejado de crescimento e desenvolvimento necessários a esta jovem profissão.
Dessa década, destaco o período intermédio, por volta de 2020, altura em que uma pandemia nos surpreende de forma devastadora. Em que os profissionais de saúde são chamados a lutar contra um desconhecido, a improvisar recursos e medidas, eles próprios vítimas desta temível doença, precisando de distribuir forças entre a proteção dos seus e daqueles que juraram cuidar. Neste grupo de profissionais, encontravam-se nutricionistas, encontrava-me entre eles também. Perdidos entre novas funções reinventadas, confrontados com o dever de continuar a cuidar e a obrigação de nos protegermos e de proteger quem cuidávamos.
Deixamos de poder fazer consultas no modelo habitual; passamos a fazê-las através de uma chamada telefónica, tentando adivinhar pela voz do outro lado, o significado daquela voz trémula, quando nos dizia que não fazia sopa porque o medo de sair de casa era maior. Queríamos saber mais: se estavam sozinhos, se o medo podia estar a vencer a coragem de recorrer a cuidados que pudessem estar a necessitar. E depois, assistíamos do lado de dentro dos hospitais: os corredores vazios onde os nossos passos ecoavam, o chão marcado por cores a delimitar fronteiras onde de um lado estávamos limpos e do outro estaríamos sujos, com o dever de cumprir religiosamente procedimentos, sob pena de podermos colocar dezenas em risco. Comíamos sozinhos e falávamos sem vermos o rosto de cada um.
Um utente infetado disse-me um dia que anotava os nossos nomes para que, quando tudo passasse, pudesse voltar e conhecer-nos além dos nossos olhos ou da nossa voz. Não o voltei a ver; não sei se regressou. Este foi o cenário por que muitos nutricionistas passaram e nesta altura, vários olharam para o caminho da profissão e viram um deserto. Sentiram-se sós, desamparados e isso fez temer sobre o futuro, se continuasse a desenhar-se sobre uma base tão frágil, em risco de desaparecer na primeira ameaça.
Os nutricionistas aprenderam a levantar-se as vezes necessárias, a redesenhar modelos de intervenção, formas de integração e atuação nos diversos campos, clássicos ou menos clássicos, encontraram formas de se afirmar, de se construir e, tantas vezes, reconstruir, mas em plano precisam de um terreno cada vez mais sólido e fértil, que permita criar raízes fortes, caules robustos e frutos que mais tarde se possam colher.
Os desafios estruturais persistem e exigem atenção redobrada. A abertura excessiva de cursos de licenciatura em áreas da nutrição que habilitam à inscrição na Ordem, sem correspondência com a absorção real no mercado de trabalho, ameaça a valorização da profissão e a sua credibilidade. Por outro lado, o Serviço Nacional de Saúde continua a registar um défice de nutricionistas, o que condiciona a capacidade de intervenção em áreas fundamentais como a promoção da saúde e a prevenção da doença, o acompanhamento nutricional na doença aguda, crónica e na reabilitação e tem impacto direto na gestão e intervenção nas situações de desigualdade no acesso a uma alimentação adequada.
A esperança chegou na forma de mudança, para um sentido que aspira a um trabalho contínuo, de dedicação plena aos interesses de todo um país que, para ser mais rico precisa de ser mais saudável e para o conseguir, precisa da garantia de acesso a nutricionistas e a cuidados nutricionais de qualidade.
Em quase dois anos concretizamos de forma objetiva várias conquistas que moldam este caminho: a comparticipação pela ADSE às consultas de nutrição em ambos os regimes, a implementação do “Cheque-Nutricionista” aos estudantes do ensino superior, que será em breve alargado a todos os jovens entre os 15 e os 35 anos, o restabelecimento da isenção de IVA para consultas de nutrição prestadas em ginásios ou equipamentos desportivos e ainda o trabalho de proximidade com os grupos parlamentares na perspetiva de permitir a alteração do Estatuto da ordem profissional, com vista à eliminação do estágio profissional obrigatório como condição de acesso à profissão, um obstáculo real que tem trazido constrangimentos a jovens licenciados a quem queremos abrir portas e no qual temos depositado, desde o primeiro dia, muito trabalho e esforço para que a correção desta péssima decisão possa acontecer o mais rapidamente possível, tornando o acesso à profissão mais justo e equitativo para todos.
A especialização emerge também como dimensão estratégica de diferenciação e valorização. O horizonte temporal traz consigo mais e maiores exigências: abrir caminho a novas especialidades e competências, capacitar o nutricionista em áreas de liderança e decisão, integrar a profissão como resposta necessária em contextos emergentes. A evolução profissional reforçará o reconhecimento técnico-científico da classe e criará carreiras mais robustas e visíveis.
Estes são apenas alguns exemplos de tantos que estão já em curso ou aspiramos vir a desenvolver, sendo certo que as nossas ações estão colocadas no futuro, criando condições e preparando o terreno, para que o caminho possa seguir o traçado atual, caracterizado por solidez e conhecimento, rigor e solução.
São 10 os artigos de opinião especiais que celebram o 10.º aniversário da Revista dos Nutricionistas. Aceda às reflexões já publicadas aqui.




