No seu 10.º aniversário, a VIVER SAUDÁVEL convidou 10 nutricionistas a avaliar uma década de Nutrição. O artigo de opinião que se segue é da autoria de Pedro Graça, diretor da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto.
Na última década, as Ciências da Nutrição e os seus profissionais consolidaram caminhos, encontraram dificuldades, adaptaram-se. Não foram os 10 anos mais brilhantes dos 50 que já vivemos juntos em Portugal, mas vale a pena celebrar e refletir sobre esta parte do nosso percurso. Mesmo que cada um tenha uma opinião diferente.
Poderemos começar pelo reconhecimento da comunidade científica internacional da relevância da alimentação saudável como fator central do bem-estar das populações. Nesta última década, a evidência acumulou-se nesse sentido. O nosso padrão alimentar associou-se também à saúde do planeta, que é muito determinada pela relação entre o consumo de proteína de origem animal versus a de origem vegetal.
Dois grupos de documentos centrais para estas conclusões foram os relatórios produzidos pelo Institute for Health Metrics and Evaluation da Universidade de Washington, que têm como objetivo fornecer estimativas sobre as causas da carga global da doença, bem como a carga da doença atribuída a diferentes fatores de risco. Incluí a análise de um total de 88 fatores de risco e dados de 204 países. Desde o ano de 2016 que Portugal, através da Direção-Geral da Saúde (DGS), integra este estudo e os dados da última década apontam sempre no sentido de a alimentação inadequada ser uma das principais causas dos anos de vida saudável perdidos pelos portugueses.
Outro documento central neste conhecimento que se tem consolidado é o produzido pela EAT-Lancet Commission on healthy, sustainable, and just food systems, uma comissão científica interdisciplinar constituída em torno da revista The Lancet – uma das publicações científicas mais respeitadas do mundo –, e integrando 37 cientistas de 16 países, especialistas em áreas como nutrição, agricultura, meio ambiente, política alimentar e sustentabilidade. Este relatório sugere o conceito de “dieta da saúde planetária” (planetary health diet) como um modelo alimentar determinante para lutar contra as alterações climáticas. Estes e outros grandes estudos científicos produzidos nesta década contribuem para o reconhecimento da importância do consumo alimentar e das escolhas alimentares individuais como centrais para a sobrevivência da espécie humana.
Associado a este reconhecimento crescente da importância do que comemos, também a profissão cresceu em número e diversificou as suas áreas de atuação nestes últimos 10 anos. Tanto no setor público como no privado. Percorreram-se caminhos novos, consolidaram-se áreas, Portugal definiu uma estratégia alimentar para a promoção da alimentação saudável que é hoje uma referência na política pública a nível internacional e vimos diversos colegas afirmarem-se profissionalmente, cá dentro e lá fora, desde o desporto à oncologia ou na ajuda humanitária. Infelizmente, o crescimento da profissão foi desigual, fruto de uma qualidade formativa não uniforme, pouco vigiada e mal verificada pelas entidades competentes. A par do crescimento quase descontrolado dos nutricionistas formados em Portugal e da incapacidade de regular a qualidade formativa, a profissão debate-se ainda com a iniquidade dos estágios profissionais que, nestes últimos 10 anos, pouco ou nada acrescentaram à qualificação dos mais jovens e que continua a ser um obstáculo sério à entrada dos mais novos no mundo do trabalho, a par da indefinição de algumas áreas de atuação dos nutricionistas, como é o caso exemplar da prescrição de nutrição entérica e parentérica, onde o poder corporativo e económico se sobrepõem ao interesse do país.
Um terceiro aspeto, relevante nestes últimos 10 anos, foi o reconhecimento do impacto dos determinantes comerciais da alimentação na nossa prática profissional. Durante muitas décadas pensámos que parte do insucesso da nossa atividade de promoção da alimentação saudável se devia exclusivamente à diminuta literacia nutricional dos cidadãos ou à nossa incapacidade de modificar conhecimentos, atitudes e ações dos consumidores. Felizmente que diferentes autores e investigadores como Rob Moodie, Kelley Lee, Marion Nestle ou Melissa Mialon, entre outros, e revistas como The Lancet Global Health ou a Organização Mundial da Saúde (OMS), têm alertado para os fatores económicos e corporativos que moldam os sistemas alimentares e influenciam hábitos alimentares, muitas vezes em detrimento da saúde e do meio ambiente.
Por exemplo, através de pressão política e corporativa para impedir ou enfraquecer medidas de regulação pública, como a existência de rotulagem nutricional clara, colocar obstáculos às restrições à publicidade alimentar ou à tributação de bebidas açucaradas. Ou com a construção de narrativas e desinformação, promovendo a ideia de que as escolhas alimentares são uma questão exclusiva de responsabilidade individual e não do ambiente obesogénico onde habitamos e ocultando o papel das suas próprias práticas comerciais. Este será um dos grandes desafios dos próximos anos, para a sociedade civil portuguesa, pouco mobilizada em torno da alimentação, e para a profissão, muito frágil face às pressões do poder económico e ainda muito deslumbrada com o brilho das redes sociais.
São os novos tempos e os novos desafios, cada vez maiores, que esta jovem profissão enfrenta. Frágil, por um lado, mas que nunca foi tão necessária nestes tempos difíceis. Ninguém como os nutricionistas tem hoje conhecimentos tão profundos e especializados sobre os alimentos, a sua composição complexa e em mudança constante e o seu impacto na saúde humana. E sobre o relacionamento da espécie humana (nas suas vertentes que vão da psicológica à económica) com o sistema alimentar cada vez mais complexo. Por fim, nenhuma profissão é tão capaz de lidar com aqueles que são os dois maiores problemas éticos e de saúde da humanidade – a escassez de alimentos, a sua má distribuição e, consequentemente, a fome (num planeta com alimentos suficientes para todos); e as consequências da impossibilidade de acesso a alimentos saudáveis e, assim, a obesidade. Ambos os problemas, que são pandémicos, não se resolvem de forma imediata e exclusivamente medicamentosa, mas sim através de um trabalho persistente e laborioso sobre as suas causas e consequências, sobre o individuo e sobre a comunidade, que mais nenhuma outra profissão consegue.
Apesar de tudo, tenho muita esperança no futuro e nos nutricionistas como protagonistas essenciais desta esperança!
São 10 os artigos de opinião especiais que celebram o 10.º aniversário da Revista dos Nutricionistas. Aceda às reflexões já publicadas aqui.




