
Por Flora Correia, Professora Catedrática convidada do Curso de Ciências da Nutrição da Universidade Lusófona, em Lisboa, e Presidente da Sociedade Portuguesa de Ciências da Nutrição e Alimentação.
Ao longo da História, o corpo humano foi mais do que biologia: foi uma mensagem social. Na Antiguidade, no Renascimento e até ao início da Idade Moderna, um corpo volumoso era sinal de riqueza, acesso a alimentos e isenção do trabalho físico pesado. Pintores retratavam figuras arredondadas como ideal de beleza e, para muitos, engordar era sinónimo de ascensão social.
Mas os séculos trocaram as voltas a estas ideias e representações sociais. O que antes era símbolo de privilégio tornou-se marca de desigualdade. Hoje, a obesidade afeta, em grande parte, populações com menos recursos, vítimas de um sistema alimentar que oferece “energia barata”, mas pobre em nutrientes, e de um ambiente urbano que promove o sedentarismo. O luxo deixou de ser comer em abundância e passou a ser ter acesso a uma alimentação saudável e tempo para cuidar do corpo.
A resposta médica à obesidade também evoluiu. No passado, o combate ao peso fazia-se com soluções improvisadas, muitas vezes perigosas: dietas extremas, medicamentos tóxicos e métodos sem base científica. Ao longo do século XX a ciência foi expondo a obesidade como uma doença crónica e multifatorial, com raízes na genética, no metabolismo, no ambiente e nos comportamentos. Hoje, fala-se amplamente de planos alimentares adaptados e personalizados, acompanhamento psicológico, fármacos modernos e programas de exercício estruturado.
Ainda assim, há casos em que estas estratégias não se mostram suficientes. A obesidade grave, frequentemente associada a complicações, como diabetes tipo 2, hipertensão e apneia do sono, pode exigir medidas mais radicais. É aqui que entra a cirurgia bariátrica ou metabólica. Longe de ser apenas um “atalho estético”, trata-se de um procedimento médico robusto, que altera o sistema digestivo e induz mudanças profundas no metabolismo.
Reflexões sobre o divórcio entre as disciplinas clínicas e o suporte nutricional
A cirurgia é, sem dúvida, uma ajuda fundamental na perda de massa gorda, e os seus resultados podem ser impressionantes, não só em termos de redução ponderal como de melhoria ou mesmo remissão da diabetes e redução do risco cardiovascular. No entanto, não devem ser ocultados outros resultados, não tão favoráveis e que merecem reflexão.
Entre os que se encontram descritos na literatura e o que fui observando ao longo de quase três décadas de acompanhamento de doentes obesos encaminhados para cirurgia, a que acrescem os muitos trabalhos desenvolvidos no âmbito desse acompanhamento, destaco o frequente reganho de peso que tende a ocorrer sobretudo no segundo ano pós-cirurgia, e que, em média, apenas 1 em cada 3 doentes mantém a perda de peso a longo prazo.
Uma confiança excessiva no “êxito sustentado” da cirurgia bariátrica, que alguns alegam, por vezes facilita a prática de técnicas cirúrgicas sem tentativa prévia de correção alimentar, dando a entender que a cirurgia resolverá tudo. A importância de aspetos comportamentais e da relação com a imagem corporal é muitas vezes menosprezada, potenciando resultados muito abaixo do desejado. Estes doentes precisam manter um plano estruturado, acompanhamento regular e não podem ser “abandonados” pelas equipas multidisciplinares que os seguiram ou, se houver transferência para outros profissionais, que essa ligação seja preservada. A relação de confiança com quem os acompanha é muitas vezes o que garante a motivação e a adesão às recomendações.
Não é por acaso que as cirurgias revisionais se tornaram frequentes entre quem já foi submetido a outras técnicas. É preciso entender (e dar a entender) que a cirurgia não é um “milagre” que assegura uma perda de peso sustentável. Reduzir o IMC pode ser importante, mas sem alteração do comportamento alimentar e sem atividade física regular, o ciclo repete-se. A cirurgia só funciona como “arma final” se fizer parte de um triângulo equilibrado: alimentação, atividade física e apoio psicológico.
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No fundo, a evolução do olhar sobre a obesidade – de símbolo de abundância a doença que ameaça vidas – mostra como saúde e contexto social estão interligados. Se no passado a gordura era um privilégio, hoje o privilégio é poder viver sem que ela nos roube anos de vida. E para ser clara: para alguns, o bisturi não é vaidade, mas também não é, por si só, a solução. É uma ferramenta poderosa, sim, mas que só cumpre o seu papel quando acompanhada de mudanças profundas e sustentadas no estilo de vida. Porque a cirurgia bariátrica é, para muitos, mais do que estética: é sobrevivência.




