Nutrição: Políticas de saúde pública “não podem esperar” 639

Estudos recentes mostram que existe uma associação entre alimentos ultraprocessados e maior risco de morbilidade por cancro, diabetes tipo 2 e doenças cardiometabólicas. Os Estados Unidos lideram o consumo destes alimentos num universo de 32 países. Portugal situa-se em 20º lugar.

No Congresso 2025 Nutrition Insights, João Breda, Special Adviser do Diretor Regional da OMS para a Europa, refere que a definição de alimentos ultraprocessados “foi desenvolvida, basicamente, pelo professor Carlos Monteiro e a sua equipa, no Brasil”. Recorde-se que, em 2009, a equipa de Carlos Monteiro sugeriu que se olhe para os alimentos de acordo com o grau de processamento e o próprio processo de transformação. A classificação, denominada NOVA, inclui quatro grupos.

NOVA 1 diz respeito aos alimentos in natura ou minimamente processados; NOVA 2 refere-se aos ingredientes culinários processados (por exemplo, azeite, manteiga e açúcar); NOVA 3 diz respeito à categoria de alimentos processados, composta por itens do primeiro grupo (in natura e minimamente processados), modificados por processos industriais relativamente simples e que poderiam ser realizados em ambiente doméstico. Contam com a adição de uma ou mais substâncias do segundo grupo, como sal, açúcar ou gordura. As conservas de legumes ou de pescado, frutas em calda, queijos e pães do tipo artesanal são alguns exemplos.

NOVA 4, o último grupo, diz respeito aos alimentos e bebidas ultraprocessados, aos quais são frequentemente adicionados corantes, aromatizantes, emulsionante, espessantes e outros aditivos. Os alimentos in natura são uma pequena percentagem da composição dos ultraprocessados ou estão simplesmente ausentes, como no caso de produtos com sabor a frutas.

“Ninguém vai conseguir fazer uma dieta destas para o resto da vida”

Esta classificação “tem vindo a ganhar muita atração e é cada vez mais utilizada”, admite João Breda, mas “não foi adotada pela Organização Mundial da Saúde”. A equipa de investigação brasileira “está a trabalhar vários grupos de alimentos, mas também proporciona exceções por vezes significativas, e de alguma forma até questionáveis, porque têm uma série de fatores que acabam por confundir um pouco a classificação”, argumentou.

As guidelines atuais da OMS “incidem sobre os nutrientes, alguns dos quais são encontrados nos ultraprocessados, tais como as gorduras saturadas, gorduras trans, sal e açúcares”.

Estas guidelines “têm sido desenvolvidas pela OMS na área da Nutrição há muitos anos, através da colaboração entre os melhores cientistas do mundo, que não evidenciam conflitos de interesse e utilizam as metodologias mais avançadas, baseadas na evidência científica”.

Catarina Sousa Guerreiro é a presidente do Nutrition Insights

João Breda sublinha ainda que estudos recentes revelam que existe uma associação entre as bebidas adoçadas artificialmente e açucaradas, produtos de origem animal e molhos, pastas e condimentos, “a um maior risco de morbilidade por cancro, diabetes tipo 2 e doenças cardiometabólicas”.

Em suma, o especialista defende que “tem de haver um alinhamento entre a definição e o entendimento dos alimentos ultraprocessados, as recomendações nutricionais, o conhecimento científico que existe” e “muito mais clareza sobre aquilo que entendemos como fazendo parte deste grupo de alimentos”.

Políticas de saúde pública “não podem esperar”

De acordo com o farmacêutico Bernard Srour, professor de Epidemiologia no Centre for Research Epidemiology and Statistics (CRESS), de Paris, um estudo de Touvier et al, publicado em 2023, sobre o consumo de ultraprocessados em 32 países do mundo, mostra que os Estados Unidos ocupam o primeiro lugar, com 58%, seguidos do Reino Unido, Canadá, Suécia e Austrália. Portugal surge no 20.º lugar, depois da Dinamarca e da Espanha.

Em 2009, a equipa de investigação francesa lançou o NutriNet-Santé Cohort Study para estudar as associações entre Nutrição e saúde. O estudo registou o consumo de alimentos habituais dos participantes, categorizados de acordo com o seu grau de processamento pela classificação NOVA.

Através da resposta de milhares de pessoas a questionários sobre estilos de vida, atividade física, características antopométricas, saúde, medicação e questões sociodemográficas, o trabalho evidenciou que quanto maior a ingestão de alimentos ultraprocessados, maior o risco de cancro, excesso de peso, obesidade e doenças cardiovasculares.

Depois desta investigação, publicada no British Medical Journal (BMJ), a equipa procura agora entender de que forma os aditivos podem interagir e criar “um cocktail de efeitos nefastos” sobre a saúde humana.

Bernard Srour admite que o processamento de alimentos é essencial para sistemas alimentares sustentáveis e a segurança alimentar e “nem todos os alimentos industriais são alimentos ultraprocessados”.

Consumidores querem «produtos mais naturais, mais clean label e com menos aditivos», diz Mayumi Delgado.

Por outro lado, diversos fatores, como o perfil dos ingredientes alimentares, misturas de aditivos, contaminantes relacionados com as embalagens e mecanismos causais “ainda não estão totalmente esclarecidos”. Mas “as evidências acumulam-se”. E “são suficientemente fortes” para desencadear “ações que ajudem os cidadãos a identificar os alimentos ultraprocessados e limitar o seu consumo”. Aliás, na sua opinião, “as políticas de saúde pública para reduzir a ingestão de UPF não podem esperar”.

Cliente é quem dita as tendências

Dando uma perspetiva sobre as tendências, inovações e desafios dos retalhistas, posicionados entre o consumidor e a indústria, a nutricionista Mayumi Delgado, Area Manager da equipa de Nutrição e Desenvolvimento de Produto na Sonae MC, salientou que “o driver da inovação é o cliente”, ou seja, “ele é quem dita as tendências”.

Selecionando algumas tendências no desenvolvimento de novos produtos, a nutricionista apontou para a proteína, em 2024, e na altura da pandemia, “as combinações disruptivas”. A procura de emoção e diversão nos produtos alimentares e bebidas traduziu-se nas cozinhas de fusão, sabores inesperados, formatos invulgares. Por exemplo, pastel de nata e pistacho, bacon com sabor a canela ou a combinação de marcas icónicas.

“Estamos a abrir mão da nossa liberdade de nos alimentar?”

A saúde intestinal é outra tendência: “o consumidor também está à procura de alimentos que melhorem a sua saúde digestiva, principalmente através da fibra, vitamina D e probióticos”.

Outro aspeto diz respeito à necessidade de repensar o plant based. “Os consumidores não estão 100% satisfeitos com as ofertas atuais: querem escolhas menos industrializadas, mais naturais, com melhor sabor e textura, que ofereçam benefícios para a saúde e apoiem o ambiente”. Procuram, assim, “produtos mais naturais, mais clean label e com menos aditivos”.

A preocupação pela sustentabilidade também tem vindo a crescer ao longo do tempo. Os cidadãos mostram-se sensíveis às ações relacionadas com o clima, tais como práticas agrícolas sustentáveis, culturas resistentes e novas tecnologias de cultivo. Mas consideram que “devem ser as empresas a liderar e garantir a sustentabilidade”.

Sabendo que o sabor e o custo “não são negociáveis” para o consumidor, e que “aquilo que é tecnicamente ideal nem sempre é tecnologicamente possível”, Mayumi Delgado sublinha o desafio que representa para a indústria e as marcas “transformar todas estas tendências em soluções, que vão criar valor para o consumidor e ajudar a moldar o futuro da alimentação”.

 

Este artigo completa o texto “Portugal no top 20 do consumo de ultraprocessados”, publicado na edição n.º 95 da revista VIVER SAUDÁVEL