Assistência clínica e investigação: sonho ou realidade? 92

Por Júlio César Rocha, PhD; Professor Auxiliar, NOVA Medical School, Universidade Nova de Lisboa; Nutricionista, especialista em Nutrição Clínica, 0438N; Presidente da Sociedade Portuguesa de Nutrição Clínica e Metabolismo.

 

Nos últimos anos, a literatura científica tem vindo a sublinhar a preocupação com a prevalência de excesso de peso e obesidade em doentes com Fenilcetonúria. Estes doentes estão sujeitos a uma intervenção nutricional que pressupõe uma restrição do aminoácido essencial fenilalanina, em paralelo com a suplementação com substitutos proteicos, livres ou pobres no referido aminoácido.

Adicionalmente, a intervenção nutricional contempla também a inclusão de alimentos especiais hipoproteicos, utilizados como garante do aporte energético. Considerando o cariz multifatorial da obesidade, é com naturalidade que entendemos a inexistência de evidência científica que demonstre a causalidade da ingestão destes alimentos especiais hipoproteicos na incidência de obesidade nesta população de doentes.

Não restam dúvidas acerca da eficácia desta intervenção nutricional em doentes com Fenilcetonúria, na medida em que esta permite uma redução das concentrações plasmáticas de fenilalanina, minimizando o grau de toxicidade ao nível do sistema nervoso central. O aporte proteico constitui assim um aspeto central da intervenção nutricional nestes doentes. Os substitutos proteicos têm um papel direto na melhoria do controlo metabólico.

Por outro lado, em função do estudo molecular dos doentes, a existência de atividade enzimática residual, associa-se à possibilidade de aumento do aporte de proteína intacta (proveniente de alimentos em natureza), com possibilidade de redução do aporte de proteína proveniente dos substitutos proteicos. Este ajuste pode, em muitos casos, ser amplificado com o recurso a terapêutica farmacológica com dicloridrato de sapropterina, dado o efeito chaperona na enzima hidroxílase da fenilalanina.

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O artigo científico “Protein intake and prevalence of overweight in patients with phenylketonuria: A 10-year longitudinal study” publicado este ano na revista Molecular Genetics and Metabolism é pioneiro na avaliação da prevalência de excesso de peso e obesidade em doentes com Fenilcetonúria ao longo de 10 anos de seguimento 1. Claramente, os resultados mostram que o aumento do aporte de proteína total, particularmente proteína natural (intacta, proveniente de alimentos em natureza) traduz uma diminuição do risco de excesso de peso e obesidade. Este é um aspeto importante, na medida em que, as recomendações europeias não nos apresentam uma indicação do aporte proteico recomendado para estes doentes.

Todavia, este artigo científico encerra uma mensagem mais importante, e aplicável provavelmente a muitas outras áreas da nutrição clínica, bem para além das doenças raras. Todos concordamos com a pirâmide da evidência científica, e o natural posicionamento dos ensaios clínicos no seu topo. Porém, a evidência científica oriunda do “mundo real” é igualmente importante, particularmente quando permite responder a perguntas de investigação não passíveis de resposta através de modelos de investigação mais exemplares.

Enquanto clínico e docente, considero que a atividade clínica assistencial estará para os doentes, tal como a docência está para os alunos. Por outras palavras, temos sempre de dar prioridade à assistência clínica, no cuidado prestado aos nossos doentes. Contudo, a adequada organização de uma consulta de nutrição, com seguimento de um protocolo de avaliação e intervenção nutricional, permitirá gerar, com rigor, dados clínicos de qualidade que podem e devem alimentar perguntas de investigação passíveis de serem respondidas com esses mesmos dados. Quando se aborda a importância do modelo de prestação de cuidados em nutrição, seguramente que teremos de sublinhar o espírito crítico, inerente à atuação do nutricionista, bem como, a curiosidade, característica inata de um bom investigador.

Voltando ao artigo científico aqui referenciado, salienta-se que o mesmo não mostrou um aumento significativo da prevalência de excesso de peso e obesidade ao longo de 10 anos, contrariando a hipótese levantada por outros autores, ainda que suportados por desenhos de estudo distintos. Em todo o caso, estaremos sempre a falar de uma comorbilidade e não de uma complicação da doença de base.

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Compete assim ao nutricionista, bem como a toda a equipa multidisciplinar, um olhar holístico, com olho clínico, mas também de investigação, com o propósito de materializar uma intervenção nutricional que demonstre benefício em marcadores de prognóstico da doença, mas também alimente a prevenção da instalação de comorbilidades que tanto pesam na carga de doença das populações.

1 https://doi.org/10.1016/j.ymgme.2025.109068