Em tempos de conteúdos virais e factos distorcidos, é cada vez mais difícil fazer chegar a verdade científica ao cidadão, num ambiente mediático dominado pela velocidade, pelos algoritmos e pelo sensacionalismo.
Na tertúlia “Combate à desinformação em saúde: desafios legislativos e comunicacionais”, que preencheu o segundo dia do CNA 2025, falou-se de literacia mediática, formação em comunicação e da importância de dar palco aos nutricionistas nos espaços onde se formam opiniões. Pediu-se mais ciência e menos ruído.
Entre o ruído e a verdade
Primeira nutricionista eleita deputada à Assembleia da República, reeleita nas Legislativas de 2025, que tiveram lugar no passado dia 18 de maio, e distinguida como “Nutricionista do Ano” nos Prémios VIVER SAUDÁVEL 2024, Ana Gabriela Cabilhas trouxe à tertúlia uma perspetiva única: a de quem une a profissão de nutricionista à experiência legislativa.
Quando olhamos para o fenómeno da desinformação em saúde, é inevitável recordar o que se passou durante a pandemia de covid-19. “Vimos os movimentos antivacinas a tornarem-se mais determinantes, tivemos líderes políticos a questionar não apenas a gravidade da doença, como também a alimentar teorias da conspiração ou a promover soluções sem base científica”, começou por dizer. Foi uma “tempestade perfeita” que deixou marcas profundas: “Confrontámos o lado emocional da pseudociência com o lado racional da ciência”.
À velocidade do scroll: “A comunicação digital é mais rápida do que os factos?”
A título de exemplo, sobre o contexto internacional atual, com ênfase para os desenvolvimentos nos Estados Unidos da América (EUA), referiu que Robert F. Kennedy Jr., secretário da Saúde e Serviços Humanos do governo de Donald Trump, “tem um histórico reconhecido no movimento antivacinas, mas se forem ler o manifesto Make America Healthy Again, muitos dos nutricionistas não vão discordar, nomeadamente na mudança de paradigma, focado na prevenção da doença e não apenas na gestão da doença”.
E é exatamente aqui que está o perigo: as mensagens contraditórias e o ruído gerado por líderes que, ao mesmo tempo que contestam a ciência, apresentam propostas aparentemente alinhadas com os princípios da prevenção em saúde. “Verdades mostradas como mentiras” ou “factos transformados em pseudofactos” geram um terreno fértil para a desinformação e confundem o cidadão. Isto exige um reforço da educação para a literacia mediática, digital e em saúde.
“Só com pensamento crítico e ferramentas adequadas é que as pessoas poderão tomar decisões livres e informadas”, defendeu. A nutricionista destacou o papel dos decisores políticos no reforço – ou enfraquecimento – da confiança na ciência: “A ciência precisa de pensamento livre para florescer. Mas, em função de líderes políticos mais ou menos autoritários, pode ser condicionada”.
No digital, a deputada reconheceu as dificuldades de quem comunica com base na evidência. “O que sinto na minha atividade política é que os conteúdos moderados, equilibrados, com compromisso com a verdade, têm uma menor atração nos algoritmos. É mais difícil, sim. Mas é o caminho certo”, expôs.
“É preciso fazer mais”
Face aos baixos níveis de literacia da população, Ana Gabriela Cabilhas sublinhou a necessidade de trabalhar em conjunto com os profissionais da comunicação. “Se nós, nutricionistas, não queremos pessoas sem formação a propagandear atos e informação da nossa área, também temos de perceber que a comunicação é uma área que está estudada, que tem regras, método, estratégia. E precisamos de aprender com os melhores dessa área para que depois, nas nossas diferentes áreas, possam ser os nossos a comunicar saúde”, indicou, elencando a necessidade de transportar esta dimensão da ciência para uma linguagem mais acessível para o cidadão.
“Quando os jovens assumem a liderança, os projetos têm maior continuidade”
Para isso, a aposta deve ser clara: “É preciso fazer mais! Ao nível do ensino superior, podemos e devemos desenvolver mais estas competências. Mas não nos podemos demitir de ocupar não apenas os média tradicionais, mas, acima de tudo, também o espaço digital. Grande parte da desinformação está no Facebook, no Instagram, no TikTok, no YouTube”. “É um trabalho difícil”, reconheceu, porém, “a resiliência impera”.
Dar “mais voz” aos nutricionistas
No plano político, Ana Gabriela Cabilhas voltou à conversa para refletir sobre os desafios que enfrenta no Parlamento ao discutir temas de nutrição e alimentação com colegas de outras áreas. “Naturalmente que há um caminho de consciencialização que é preciso ser feito. Mas se tivermos mais nutricionistas em lugares de decisão ou de representação, claramente teremos mais voz”. Solicitou, por isso, uma maior presença da profissão nos espaços onde se definem políticas e prioridades, até porque “as questões da nutrição e alimentação nem sempre são valorizadas pelo outro lado”.
Parte do artigo “Quando a verdade não viraliza”, publicado na edição #96 da revista VIVER SAUDÁVEL (julho-agosto, 2025).




