A Nutrição em Portugal: entre a ambição e a inércia 498

No seu 10.º aniversário, a VIVER SAUDÁVEL convidou 10 nutricionistas a avaliar uma década de Nutrição. O artigo de opinião que se segue é da autoria de Conceição Calhau, professora catedrática e coordenadora da licenciatura em Ciências da Nutrição na Nova Medical School – Universidade Nova de Lisboa.

 

O estado da Nutrição em Portugal é fruto das escolhas que fizemos — e das que evitámos. E é impossível ignorar que, em dez anos, continuamos sem uma estrutura no Ministério da Saúde que coloque a alimentação no centro da estratégia do SNS. Esta ausência é sintomática: revela falta de visão para uma área que poderia reduzir doença, custos e sofrimento humano. Seria o investimento que falta fazer.

Há uma década deixei a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto para integrar a NOVA Medical School. Fi-lo porque acreditava — e acredito — que a nutrição clínica deve estar integrada na formação médica e sustentada por ciência rigorosa. Criámos, então, a Licenciatura em Ciências da Nutrição e o Mestrado em Nutrição Humana e Metabolismo, dando ao país algo que lhe faltava: massa crítica, investigação e presença estruturada nos hospitais. A criação da Sociedade Portuguesa de Nutrição Clínica e Metabolismo e da primeira Unidade Universitária de Lifestyle Medicine reforçou esse caminho.

Mas, enquanto o ensino avançou, a realidade clínica ficou para trás. Continuamos a enfrentar números crescentes de obesidade e sarcopenia, de diabetes, de DCV, de cancro e tantas outras que sabemos relacionadas com hábitos alimentares inadequados; cuidados primários sem verdadeira vocação preventiva; e serviços hospitalares onde a nutrição é, demasiadas vezes, acessória. O país paga caro por esta miopia.

O tema do pedido de análises pelos nutricionistas ilustra bem esta dificuldade em evoluir. Persistem resistências corporativas que ignoram a evidência: não se faz avaliação nutricional séria sem dados metabólicos. Continuar dependente apenas de autorrelato e antropometria é simplesmente insuficiente, para não dizer que não se cumprem as boas práticas. Se defendemos prevenção, personalização e antecipação de risco, então é inevitável permitir que nutricionistas solicitem exames relevantes, com critérios e responsabilidade. Adiar esta discussão é comprometer o futuro.

A mudança mais profunda desta década ocorreu no ensino: quatro instituições, universitárias, públicas oferecem hoje formação em Ciências da Nutrição, alterando o perfil dos profissionais que chegam ao mercado de trabalho. Esse impacto chegará, inevitavelmente, aos hospitais e à saúde pública. E não só. Espero!

A próxima década decidirá se seremos capazes de transformar intenção em ação. Deixar o diagnóstico, após diagnóstico, avançar com prevenção e tratamento. Com medidas ambiciosas e corajosas, mas sérias, necessárias e honestas no que devemos devolver à sociedade do que se faz com os impostos. E desta vez não podemos falhar: a Nutrição não é acessório — é infraestrutura básica de saúde.

 

São 10 os artigos de opinião especiais que celebram o 10.º aniversário da Revista dos Nutricionistas. Aceda às reflexões já publicadas aqui