Maior consumo de alimentos ultraprocessados representa ameaça para saúde pública 408

O aumento do consumo de alimentos ultraprocessados (AUPs) em todo o mundo representa um desafio urgente para a saúde, que exige políticas coordenadas e ações de sensibilização, indicam três artigos publicados na revista The Lancet.

A nova série da revista científica sobre Alimentos Ultraprocessados e Saúde Humana, da autoria de 43 especialistas globais, revê as provas de que aqueles alimentos, associados a um risco aumentado de múltiplas doenças crónicas, estão a substituir os frescos e minimamente processados.

Também expõe as táticas utilizadas pelas empresas para impulsionar o seu consumo e impedir a implementação de políticas eficazes, segundo um comunicado da Lancet de divulgação do trabalho.

“O crescente consumo de alimentos ultraprocessados está a mudar as dietas em todo o mundo, substituindo alimentos e refeições frescas e minimamente processadas. Esta mudança nos hábitos alimentares é impulsionada por poderosas corporações globais que geram lucros enormes ao priorizar produtos ultraprocessados, apoiadas por um extenso ‘marketing’ e ‘lobby’ político para impedir políticas de saúde pública eficazes que promovam uma alimentação saudável”, diz Carlos Monteiro, da Universidade de São Paulo, no Brasil, citado no comunicado, a que a Lusa teve acesso.

As dietas com grande quantidade de AUPs estão associadas a uma alimentação excessiva, a uma baixa qualidade nutricional (excesso de açúcar e gorduras pouco saudáveis, e pouca fibra e proteína) e a uma maior exposição a substâncias químicas e aditivos nocivos, mostram as provas analisadas.

Os investigadores realizaram uma revisão sistemática de 104 estudos de longa duração, constatando que “92 deles referiram maiores riscos associados a uma ou mais doenças crónicas, tendo as meta-análises revelado associações significativas em relação a 12 problemas de saúde, incluindo obesidade, diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares, depressão e morte prematura por todas as causas”.

De acordo com a classificação Nova, que divide os alimentos em quatro grupos segundo o seu nível de processamento industrial, os AUPs são produtos feitos com ingredientes industriais baratos, como óleos hidrogenados, isolados de proteína ou xarope de glicose/frutose, e aditivos alimentares, como corantes, adoçantes artificiais e emulsionantes.

Além da redução de custos, as empresas de alimentos ultraprocessados recorrem a um ‘marketing’ agressivo e a ‘designs’ atrativos para aumentar o consumo, tendo conseguido que este se tornasse “o setor alimentar mais rentável”.

Os lucros “alimentam o crescente poder corporativo nos sistemas alimentares”, assinalam os especialistas, revelando que para os proteger “as empresas de AUPs empregam táticas políticas sofisticadas (…) bloqueando regulamentos, moldando debates científicos e influenciando a opinião pública”.

“Coordenam centenas de grupos de interesse em todo o mundo, fazem ‘lobby’ junto de políticos, realizam donativos políticos e envolvem-se em litígios para atrasar políticas”, precisam.

Constituem “o maior obstáculo” à implementação de políticas eficazes para reduzir a quota destes alimentos na dieta da população.

“Tal como confrontámos a indústria do tabaco há décadas, precisamos agora de uma resposta global ousada e coordenada para conter o poder desproporcional das corporações dos alimentos ultraprocessados e construir sistemas alimentares que priorizem a saúde e o bem-estar das pessoas”, salienta citada no comunicado Karen Hoffman, da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul.

É necessário, segundo os autores, proteger o processo de tomada de decisões políticas da interferência da indústria, acabar com os laços da indústria com os profissionais e organizações de saúde e construir uma rede global de defesa e ação contra os alimentos ultraprocessados.

Para melhorar as dietas em todo o mundo são necessárias políticas específicas para os AUPs que complementem a legislação existente para reduzir o teor elevado de gordura, açúcar e sal nos alimentos.

Os autores também propõem restrições de ‘marketing’ mais rigorosas, especialmente para anúncios dirigidos a crianças, nos meios digitais, e ao nível da marca, bem como a proibição destes alimentos em instituições públicas, como escolas e hospitais, e a limitação da venda e do espaço que ocupam nos supermercados.

Ao mesmo tempo, “as políticas públicas devem alargar o acesso aos alimentos frescos”, defendem.

A especialista em saúde pública Camila Corvalan, da Universidade do Chile, sugere a “aplicação de impostos sobre estes produtos para financiar um maior acesso a alimentos nutritivos e acessíveis”.

Os sistemas alimentares deviam apoiar produtores locais de alimentos, preservar as tradições alimentares culturais e garantir que os benefícios económicos da produção de alimentos regressam às comunidades, segundo o comunicado.

“É importante que as políticas garantam que os alimentos frescos e minimamente processados são acessíveis e baratos – não apenas para quem tem tempo para cozinhar, mas também para famílias ocupadas e indivíduos que dependem de opções práticas. Só combinando uma regulamentação mais rigorosa sobre produtos alimentares de baixa qualidade com um apoio realista a escolhas mais nutritivas poderemos realmente promover dietas melhores para todos”, insiste Gyorgy Scrinis, da Universidade de Melbourne, na Austrália.