Entrevista: “O silêncio é um lugar de conforto” 175

Margarida Silva fez história na edição deste ano dos Jogos Surdolímpicos, em Tóquio, no Japão. As medalhas que conquistou trouxeram-lhe reconhecimento e a garantia de que nem tudo é sorte, mas sobretudo trabalho.

Em entrevista à VIVER SAUDÁVEL, a nutricionista estagiária na Nova Medical School, onde se licenciou, assegura que a nutrição é “um dos fatores primordiais” para o seu desempenho desportivo e deixa claro que a escolha por esta área de formação foi “muito fácil”, ou não fosse a nutrição todo “um mundo”.

Aquilo que o futuro me reserva, só o tempo o dirá“, admite. Até que os próximos capítulos desta história nos sejam apresentados, os alicerces atuais potenciam uma carreira que eleve a nutrição além-fronteiras.

VIVER SAUDÁVEL (VS) – Nunca uma atleta portuguesa havia conquistado uma medalha de ouro nos Jogos Surdolímpicos. A Margarida não foi só apenas a primeira a fazê-lo, como venceu duas medalhas de ouro (nos 800 metros e nos 5.000 metros), a que somou uma de prata (nos 1.500 metros). Com algum distanciamento temporal, como olha para esta aventura histórica?

Margarida Silva (MS) – Confesso que ainda não me habituei muito à ideia do que representam estas medalhas. Mas creio que o mais especial desta aventura foi sem dúvida a validação que senti. Vivo num mundo construído para pessoas ouvintes, onde a comunicação é feita através da audição. A surdez é uma condição que passa despercebida, quando as próteses auditivas têm capacidade para colmatar as minhas necessidades. Lembro-me de me sentar na cerimónia de abertura e pensar “Somos tantos” e foi muito especial validar-me enquanto pessoa surda e ter a oportunidade de competir com pessoas como eu – que não conhecem o som como a maioria das pessoas – e saber que o silêncio é um lugar de conforto. Portanto, o meu balanço destes campeonatos é sobretudo a representação de um ponto de viragem de aceitação da minha surdez e a descoberta de um mundo muito vasto, no qual eu me incluo: o mundo da comunidade surda.

VS – Esta foi a sua estreia nesta competição internacional. Por isso mesmo, quão grandes (ou contidas) eram as suas expectativas para Tóquio?

MS – Não posso dizer que não sabia que era possível trazer uma medalha. E afirmei-o publicamente antes de partir para Tóquio. Era algo que queria muito. Mas confesso que duas medalhas de ouro e uma de prata… achei que pudesse ser demasiado ambicioso face aos três anos em que estive afastada do desporto por motivos de saúde.

“Duas medalhas de ouro e uma de prata… achei que pudesse ser demasiado ambicioso”. Créditos: ERIKA IKEDA/CPP

VS – “Dizem que sou uma sortuda, mas não acho que seja sorte, é trabalho”, garantiu em entrevista ao Comité Paralímpico de Portugal. Em que se traduziu todo o seu trabalho de preparação para as modalidades em que competiu e quão diferente é o treino para as diferentes distâncias em que singrou?

MS – O treino dos 800 m, 1500 m e 5000 m envolveu duas vertentes: correr alguns quilómetros sem esquecer a velocidade. Obviamente, existe também trabalho de ginásio e reforço muscular. Contudo, não é só o físico que se treina. O descanso, a alimentação e a recuperação são tão ou mais importantes neste processo de melhoria contínua da minha performance desportiva.

As minhas distâncias de eleição são os 800 m e os 1500 m, por ter uma base de trabalho mais consistente na velocidade. Os 5000 m não considero que sejam uma distância confortável para mim. Foi uma prova que surgiu no calendário para “descomprimir”. No entanto, a corrida foi feita para pessoas rápidas. Os primeiros dois quilómetros foram muito lentos e, por isso, o resultado final ficou entregue às atletas que tinham uma base mais rápida, que acabava por ser eu e a atleta neutra.

VS – Com apenas 25 anos, como descreve o seu percurso desportivo? Como chegou até ao atletismo, em particular à corrida de meio-fundo?

MS – Iniciei a prática desportiva aos 11 anos, inicialmente na natação. Mas, por ser surda, não conseguia ouvir as instruções. Além disso, como também tenho pouca visão, não conseguia ver a boca do professor. As indicações passavam-me completamente ao lado: nunca percebia o que tinha de fazer e acabava sempre por imitar os outros colegas. Era muito aborrecido.

Quando saí da natação, comecei a correr com o meu pai e a participar em alguns corta-matos do desporto escolar. Rapidamente cheguei ao atletismo, depois do meu desempenho nos corta-matos regionais.

Inicialmente, o meu treinador quis introduzir provas curtas, mas eu não ouvia as indicações. O meio-fundo surgiu como uma forma de evitar provas em que não conseguia ver as minhas colegas na partida. Em distâncias como os 1500 m, partimos todas lado a lado e com alguma proximidade, o que me permite ter sensibilidade para perceber quando as outras atletas estão a sair.

“Nos Jogos Surdolímpicos as partidas são simples, não tenho medo de não ouvir. Porque os sinais são visuais”. Créditos: ERIKA IKEDA/CPP

VS – Quão diferente é para uma atleta surda competir nestas modalidades? Quais as especificidades associadas a esta condição?

MS – O meu treinador, Fernando Ferreira, foi quem me desafiou a assumir a minha surdez. Tinha muita ansiedade relativamente à competição, por medo de não ouvir os sinais de partida. Assumir que sou surda e integrar as competições com consciência dessa condição foi um passo muito importante para conseguir competir com mais confiança. O desporto está construído para pessoas ouvintes: todos os sinais de partida, por exemplo, são sonoros. Ou seja, quem não ouve fica condicionado mesmo antes do início da competição. Além disso, durante as provas muitas das movimentações são sonoras e não visuais.

As minhas táticas de corrida foram sempre pensadas em função da minha surdez. Desde muito nova que as minhas corridas são feitas de trás para a frente, porque, se eu ficar atrás, consigo ver o que se passa à minha frente e avaliar a corrida e as movimentações. É fácil perceber que, se eu fosse para a frente do pelotão, não conseguiria ouvir os passos ou a respiração de quem me está a “perseguir” e, portanto, é uma situação que me coloca em desvantagem.

Nos Jogos Surdolímpicos as partidas são simples, não tenho medo de não ouvir. Porque os sinais são visuais. No caso do meio-fundo: vermelho para alinhar na partida, verde para partir. E nos primeiros metros, existem luzes nas calhas, que nos avisam caso haja falsa partida e seja necessário regressar ao início.

VS – É licenciada em Ciências da Nutrição pela Nova Medical School, instituição onde se encontra a estagiar no departamento de “Extensão à Comunidade”. Porque escolheu esta área de formação e como têm sido estes meses enquanto nutricionista estagiária?

MS – A minha escolha pela nutrição foi muito fácil. Sempre tive um grande interesse na forma como a alimentação pode influenciar o nosso bem-estar, a saúde e a performance. Para além disso, estando inserida no mundo do desporto gravitacional — o atletismo — o peso era uma variável que gerava preocupação. Lembro-me de ter colegas internadas com distúrbios alimentares, e isso deixava-me muito curiosa para compreender melhor como tudo funcionava. Durante o curso, percebi que a nutrição é um mundo, e a área de nutrição comunitária pareceu-me interessante na medida em que consigo chegar a muitas mais pessoas.

VS – De que forma a Nutrição pode contribuir para o seu desempenho desportivo? Dispensa o acompanhamento nutricional ou é acompanhada por colegas?

MS – A nutrição é um dos fatores primordiais para o meu desempenho. Obviamente, ser nutricionista ajuda a compreender diversos processos metabólicos. No entanto, é importante reforçar que cada profissional tem a sua área de interesse e, por isso, ser atleta não significa ser nutricionista a exercer na área desportiva.

“Sempre tive um grande interesse na forma como a alimentação pode influenciar o nosso bem-estar, a saúde e a performance”. Créditos: ERIKA IKEDA/CPP

Reconhecendo a importância do acompanhamento nutricional, foi a Ana Sofia Gaspar, ex-colega de curso e nutricionista na Nutriwin, a profissional responsável pelo meu acompanhamento. A Nutriwin foi a empresa que apoiou e promoveu o meu acompanhamento nutricional durante toda a preparação para Tóquio.

VS – Que desafios e oportunidades lhe esperam no futuro?

MS – Aquilo que o futuro me reserva, só o tempo o dirá. Mas acredito que a dedicação e empenho são peças fundamentais para vingar em qualquer área, quer seja no mundo da nutrição ou no mundo do desporto. Da minha parte, fica a garantia de que irei continuar a fazer sempre o meu melhor.